20.8.21

UMA PEQUENA LUZ


 Uma pequena luz

Uma luz pequena e nova Nascida no bosque Na verdura do bosque Aguarda ser colhida Colhida e guardada Numa mão fechada Uma mão sem medo das fogueiras Uma mão capaz de segurar uma bala De segurar outra mão Consumada a colheita Da luz pequena e nova A mão que sem temor lhe tocou e a guardou Será candeia archote fogaréu A iluminar a cegueira dos olhos O negrume dos becos Os rostos gradeados das mulheres Era uma pequena e nova luz Na verdura do bosque Licínia Quitério

12.8.21

BALADA DA PORTA FECHADA

 É a porta fechada

dessa casa assombrada
no dizer das mulheres
ligeiras no andar.
E o vento a sussurrar:
Vai chegar vai chegar
o tempo de arrombar
essa porta fechada
dessa casa assombrada.
E a mulher a pensar:
É comigo é comigo
que ele está a falar.
Amanhã vou voltar
rente à casa passar
o meu ombro encostar
à ombreira da porta
baixinho perguntar:
Quem foi que te assombrou?
Quem foi que te fechou?
E a casa a responder:
Alguém que não gostou
da luz que em mim brilhou
e esta porta fechou
e sobre mim espalhou
este manto de sombra
e as mulheres afastou
e os homens afastou
e o medo semeou
e desde então ninguém
junto de mim passou
nem sequer reparou
que a luz não se apagou
e às vezes é luar
e às vezes nevoeiro
e às vezes é braseiro
a descair no mar.

A mulher despertou.
Não sabe se sonhou
mas pela casa passou
e a porta estava aberta
e lá dentro era dia
e o vento sussurrou:
Foste tu que passaste
contra o medo lutaste
e o teu ombro apoiaste
na ombreira da porta
que não mais se fechou.
Foste tu que mataste
a sombra que assombrou
a casa que voltou
a ser luz a ser guia.

E a casa sorria.
E a mulher sorria.

Licínia Quitério



10.8.21

OS HOMENS SÃO ASSIM

Há uma parede de silêncio

Uma casa vazia

Uma rua deserta

Um país sem nome

Aqui nasceram incêndios

Avalanches

Derrocadas aflições

Tudo passa é sabido

Amanhã tudo será diferente

Os homens são assim

Feitos para esquecer

O mal que fizeram

O mal que lhes fizeram

E também

O tamanho das casas

A cor das ruas

O antigo nome dos países

A parede de silêncio

Os homens são assim

Regressam refazem

Recomeçam a construção

Inauguram o mundo

Como se renascessem

Sempre


Licínia Quitério

4.8.21

MUDAR

 Mudar é o verbo que tudo faz crescer.

Repara na flor que em fruto se mudou
E o grão da espiga que em pão se tornou
E o riso desbragado a mudar, a estalar.
E tu a escreveres palavras que se mudam
E te mudam.
E tu que tão bem sabes quanto cresces
Quando alguém te censura dizendo que mudaste
Não mudes, continua assim, pequeno e leve,
Suave e claro. Não tens asas que subam. Fica.
Deixa lá o verbo pensar que tudo faz crescer.
O que tu és por dentro não se muda.

Licínia Quitério

O POÇO

 Na gola do poço as pedras

polidas pelos anos dos homens.

Curva contra curva, as pedras amparam

a coxa, a cintura, o bojo do ventre

de quem se abeira, se atreve, se inquieta.

Logo abaixo, no côncavo dos muros,

as avencas são o verde, a frescura,

o recorte miúdo da ternura.

Depois, a escuridão dos fundos,

cama de águas, espelho negro,

tentação e eco de velhos medos.

Se a nascente secar, o lodo guardará

a memória da água que dizia

a figura dos homens debruçados

nas pedras polidas, acima das avencas,

do fundo temerosos, desejosos.




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