30.4.17

PALAVRAS



Chamam-se nomes, verbos, conjunções, conjugações
Aparecem em revoadas de qualquer estação
Erguem-se alucinadas das montanhas do sonho à linha de água
Tombam mansas das cascatas da memória sobre a poeira do chão
Espreitam atrevidas nas frestas do desejo
Acometem as veredas da voz e dão negrume ao soluço, rubor ao grito, alvura ao amor
Atropelam-se em delírio de sílabas, demoram-se em monossílabos numa quase mudez
Divertem-se em jogos de dar e receber, de trocar, de baralhar, letra por letra, de provocar, de comover, de endoidecer
A elas ofereci meu esforço e minha força
Com elas construí minha cidade velha
Por elas correm todos os meus rios
Palavras são tudo o que aprendi
Com elas danço e toco e me divirto
Por elas chegarei à casa grande do silêncio

Licínia Quitério

22.4.17

MEU A-BRIL



Na aragem da manhã um assobio
a soletrar a-bril no meu ouvido,
a deixar-se prender, a deixar-se embalar,
a relembrar a sua e minha história,
assim como quem conta -
Era uma vez um mês
que inaugurou os anos do deslumbre,
um caldo de alegria a transbordar
dos corações à rua.
Um mês que foi um ano inteiro,
pouco mais
que as serpentes voltaram do deserto
a entorpecer o a-bril da claridade.
O seu pulmão de sol adoeceu.
Mil vezes resistiu à sombra
e à calúnia.
Mil vezes alteou o som
da liberdade.
Envelheceu Abril e eu envelheci.
O assobio da manhã no meu ouvido 
ficará
até que eu deixe de pensar -
Minha flor maior,
meu a-bril, meu a-mor.

Licínia Quitério

11.4.17

OS LAGOS



Toda a gente sabe que os pássaros não nadam.
Voam e poisam nos altos ramos das altas árvores.
Os lagos estão ali para eles se mirarem e pensarem
(toda a gente sabe que os pássaros pensam) -
Olha um pássaro tão belo como eu.
Um dia dormirei abraçado àquele irmão.
É o que esperam todos os seres que voam
sobre os altos ramos das altas árvores
sem perderem de vista os grandes lagos
onde dormem os seus irmãos das águas.

Licínia Quitério

9.4.17

SALVAÇÃO



Salvar ou não salvar é uma questão
de despertar
com uma corda no braço
ou uma pedra na mão.
Tão próxima é a foz 
que o rio não avistamos
e da nascente não sabemos
senão o grito, o arrojo, o respirar.
Dos anjos salvadores
restaram penas,
alguns poemas que em estrela se tornaram.
Um outro, eu sei, escapou
à matança, à purificação.
Se de nome mudou
talvez se chame flor ou
água de beber
ou perfume em riso de mulher.
Talvez eu seja o rio
onde mergulhe para afogar
a urgência do poema
ou seja a corda e o salve
e lance a pedra para bem longe
e o poema seja eu que me salvei.
Licínia Quitério, em As Vozes de Isaque

6.4.17

ABRIL INACABADO



Houve um dia de espanto e de tremor.
Houve a notícia ainda inacabada
ainda frouxa.
Houve a alegria a desatar
os corredores do medo.
Houve um dia inteiro
meu amor nascido
meu  soldado de cravo
minha janela aberta
meu poema
meu caminho feito
de mão na mão
de coração a coração
entoada a canção
na voz mais alta
que aprendemos.
Foi assim o princípio
da tarefa mais nobre
de nomear a liberdade.
Que ficou desse dia
é o que te vou dizer
meu amor sem guarida
meu cravo sem soldado
minha janela entreaberta
meu tão curto caminho
de mão no coração
em voz baixa a canção.
Do dia do espanto e do tremor
ficou da liberdade
a antiga memória
a nova inquietação.
Desse dia sem noite
meu amor acabado
minha flor desmaiada
minha janela fechada
um poema ficou
na minha mão guardado
e lhe chamei Abril
imperfeito
inacabado.

Licínia Quitério

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