30.6.15

ESTE TEMPO


Perigoso este tempo de cardos e chacais. 
Tempo de  mendigos e assassinos.
Tempo seco e azedo que não alimenta, 
não cuida, não cria. 
De aves tombadas pelo caçador.
De cães abandonados pelo caçador. 
Da gula dos abutres, do escárnio das hienas. 
É este o tempo de partir ou ficar, 
de perder ou ganhar, 
de vergar ou erguer, 
de se dar ou se vender. 
Tempo sem penumbra, 
sem copo meio. 
É aviso, é anúncio, 
mas os surdos não ouvem, 
os cegos não vêem. 
É pegar ou largar 
neste tempo tão longo, tão breve, 
tão audaz e tão néscio. 
Outro tempo haverá. 
Pode ser amanhã, 
pode ser nunca mais. 
A gaveta do mel, a gaveta do fel. 
Qual abriremos, qual?

Licínia Quitério

21.6.15

SOLSTÍCIO DE VERÃO


Celebremos

O dia da Claridade
Da festa do Sol 
Das pedras verticais 
Das frestas 
Da passagem
Dos carvalhos gigantes
Dos velhos sacerdotes
Da transmutação
Do oiro puro 
Da glória 

Amanhã o declínio

Celebremos

Licínia Quitério

17.6.15

AO ANOITECER


Ao anoitecer, 
celebro as emoções do dia, 
recolho os animais, 
recolho-me,
limpo-me das poeiras, 

emudeço.
Uma sirene rompe o silêncio da sala
e as flores na jarra estremecem.
Os olhares dos mortos nos retratos, 

iguais aos dos vivos.
Procuro o sono e ele chega, 

macio,
de ondulação igual à do poema.
Cavalgo a prancha e vou

em direcção ao túnel. 
Acima de mim, a água, 
e a luz ao fundo, branca. 
Talvez eu chegue,
talvez, 

ao outro lado do espelho.
Que ninguém me desperte na viagem.


Licínia Quitério 

8.6.15

DISTÂNCIA


Este é o meu tempo de distância.
Entre mim e mim alonga-se 
um campo de túlipas e sossego.
Não direi da nuvem, mas do azul.
Dos náufragos, direi aventureiros de abismos.
Deitarei a estranheza na cama da noite, 
sem embalo e sem sono.
Sou agora o passageiro cego.
Procuro a mansidão dos covis 
para onde tendem as feras.
Um clamor assola-me os nervos.
Virá das entranhas do mundo 
ou da onda que se levanta 
nas manhãs loucas dos justos.
E a distância se faz casa de Orestes, 
asa de Ícaro, 
corvo e pomba, 
corpo. 

Licínia Quitério

4.6.15

HUMANO


Morres todos os dias. 
Nas bermas dos caminhos velhos, 
no papel manchado das cartas, 
no mofo das gavetas, 
no toque do abandono, 
no que ainda não sabes, 
no que já esqueceste, 
na fuga do desejo, 
no sabor perdido das amoras, 
no odor perdido dos amores. 
Morres e revives todos os dias. 
Quando o galo canta ao longe, 
quando chegam notícias de primaveras, 
quando as dores amortecem, 
quando um riso atravessa a planície, 
quando sobes à árvore com os olhos, 
só com os olhos, 
e os frutos te adoçam a boca. 
És isto, 
um corpo vivo 
a percorrer o domínio dos deuses,
implacáveis, 
insensatos, brutais, amáveis, serenos, 
misericordiosos.  
Deuses mortais, 
eternos. 
Humano és tu.

Licínia Quitério

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