29.12.16

NÃO SABEMOS


Não se pode abraçar uma lembrança.

A matéria dos sonhos é volátil.
Inaudível 
a harmonia da água
que pode ser ribeiro
que pode ser naufrágio.
A cor é a que não vemos
e o negro só existe se pensado.

Na floresta dos nomes que sabemos
erguem-se vozes
com que abrimos clareiras
de silêncio
e esperamos o odor de novas flores.

Tudo o que importa já existe
mas não sabemos
que nome dar ao que navega além do corpo
além da casa dos sentidos.

Licínia  Quitério

20.12.16

O TREMOR


Desde a estrela, desde a lua,
a noite se acendeu e
os homens perderam a cegueira.
Esperaram o dia, os corpos
a vibrar de um tremor novo
que não era voo, nem corrida,
nem salto de animal,
nem ondear de mato.
Era um trovão, um rio, um ardor,
uma pressa e um sossego.

Desde que o fogo aconteceu,
o frio fez-se calor e a palha ardeu,
como se fosse raio que caísse.
Era outro o dia que nascia, 
embora houvesse a noite.
O tremor dos homens fez-se febre
e a pele pediu a pele.
No calor do lume se encontraram,
no peito uma batida de tambor.

Hoje é o lampião que acende a noite.
Os homens perderam a memória
e quando dizem fogo ou estrela
não sabem do tremor que os percorreu
no princípio do espanto,
no alvor da caminhada.
Dizem amor ou dizem filho, mas
esqueceram a noite que acendeu o dia.

Licínia Quitério

18.12.16

AS CASAS



Antes que as guerras cheguem,
as casas guardam pedras 

cansadas de memória.

Nas fendas, sopros
que podem ser o vento
ou a passagem da saudade.


Vão desenhando motivos vegetais 
na amargura da cal 
há muito poluída.


Exibem cicatrizes,
mas não pedem compaixão
nem cura.


Gozam a transparência da idade.


Jogam às escondidas com o céu,
fingem que prendem nuvens
nas janelas.


Até que a terra trema,
o homem esqueça,
o tempo passe 
e as desfaça.

Licínia Quitério

17.12.16

A NOITE


A noite é manto e alimento de orfandades.
Na escuridão, igual o cor-de-rosa dos amados
ao anil crepuscular dos rejeitados.

De noite caminham os proscritos da alegria
e os recusados do banquete.
A noite guarda com igual ternura
a miséria e o mendigo, 
o atrevimento e o precipício.

Nos socalcos da noite há poemas e rimas
prontos para a colheita do poeta 
que na própria cegueira acende estrelas.

Licínia Quitério

13.12.16

DISSOLUÇÃO


Da minha janela, pela manhã,
avisto o  véu  do sono inacabado
a desfazer rasgões, arestas.
Das cores restou apenas

seu esplendor e ausência, 
que nomeei de branco e preto,
a dar-lhes corpo e vida.

Recolho-me e aguardo.
Mais logo irei dizer 
o azul celeste,
o verde esmeraldino,
o amarelo oiro,
o vermelho papoila,
para não falar da velha foto a sépia,
antes que tudo volte a ser
dissolução.

Licínia Quitério

12.12.16

CASTELOS



Assim se fazem castelos

Por cada pedra um ai
Por cada torre um homem
Nenhum castelo alcança
a doce madrugada dos pardais

Em cada pedra um sonho de oiro
Só as mãos dos obreiros são reais

Licínia Quitério

6.12.16

A TERRA


A minha terra é a cama onde me deito
a mesa dos manjares e da tristeza
o braço amigo mesmo longe, mesmo frio

A minha história é a da outra que foi
pelos caminhos do cristal e da ferrugem
e voltou pálida e estranha
com os olhos plenos de paisagens 
onde navegam  árvores torturadas
casas com os ossos a espreitarem
o latido dos cães, a chamarem 
as contorsões das lagartixas

Mas há o debrum azul a serenar tempestades
o  oiro matinal a engravidar searas
o luar a amparar os fugitivos

Assim a terra onde me vivo, me prossigo
e às vezes canto e espero

Licínia Quitério

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