28.1.16

UMA VARANDA


Há uma varanda sobre o tempo
onde debruço os meus espantos

de haver serras, vales e o casario
feito de pedra e ausência.
É uma longa varanda de silêncio
aberta à novidade e à tradição
com que um país se faz e se desfaz.
A varanda tem um livro que se lê
ao despertar dos dias quando o sol
ganha altura e incendeia e os olhos
inundados recuperam do berço
ternuras maternais.
Varanda atenta às tardes, 
escudo de ventos, esteira de sossego,
e o livro aberto  a convocar 
memórias de invasores 
que de amores se perderam
pelas rubras mulheres,
pelas águas tentadoras.
Ao desdobrar da noite podem acontecer 
mistérios, nebulosas,
ou o trote louco dos cavalos.
Pode também acontecer que a varanda,
rendida à vibração nocturna, se recolha,
feche o livro e os homens adormeçam 
enquanto estrelas nascem,
estrelas morrem.

Licínia Quitério

14.1.16

MADRUGADA


Inefável a luz da madrugada
a convocar memórias
de terras nunca vistas

Os olhos arrasados
a tentar abarcar
a transfiguração 
Nas ramadas mais altas
avistam-se fulgores
cintilações de pássaros
Sonolentos os homens
de esperança no bornal
a encetar o dia
Um navio de espuma
atravessa a distância
do coração do homem
ao coração da terra
Com seu esplendor divino
aurora se apresenta
enfeitiça deslumbra
mansamente se esvai
No ar persiste o cheiro
das queimadas
A névoa sobre o rio
é um véu de bondade
a amaciar tristezas
Já os homens caminham
em direcção ao sol
Amanhã voltarão
de novo partirão
mais uma vez e outra
e a madrugada espreita
tremeluzente 
eternamente nova

Tão breve o que é perfeito
Tão demorada a noite

Licínia Quitério

5.1.16

PRENDO-ME


Prendo-me no ensaio desajeitado de ternuras
quando as gotas de chuva se desatam
nos vidros da manhã e a música da terra
se adivinha em pétalas de flores.
Os raros transeuntes deste dia têm
um jeito húmido de andar, uma moleza
envergonhada, ou são meus olhos
lentos de acordar.
Quem me dera notícias de alegria
atravessassem a rua do meu sonho
e a chuva fosse a embriaguez do vinho,
o carinho da mão a amortecer a dor,
a suave liquidez do adormecer.
Deste jeito será a paz com que me vivo, me prossigo.

Licínia Quitério

1.1.16

PASSAM PONTES

Passam pontes e pontes, 
sobre pálidas águas, terras ásperas. 
Imóveis quase sempre as pedras.
Frágeis pontes do princípio dos dias.  
Atravessam os anos e escurecem 
as pontes do ocaso, trémulas. 
Carregam as pontes, abatem os arcos, 
passam a dizê-las imprestáveis. 
Uma margem, outra margem e eles 
indecisos, entre a fome e a fome.
Há quem se atreva à travessia
em busca de razão e nem a ilusão vá encontrar.
Ficar pode ser um destino, partir é fugir dele. 
Se ponte não houver, a nado vão ou morrem.

É isto o que sabemos dos escravos
de novo em movimento, torpedeando
os pontos cardeais, chamando norte
ao que o norte perdeu, negando o sul
que depois de os parir os abusou.

Licínia Quitério   

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