29.6.06

DO TEMPO


Foto do Tó-Zé - Tempo Antigo

Há quanto tempo foi
que esta batida começou
a ecoar pelas crateras
dos vulcões dormentes?
Vieram gelos e degelos
e com eles chegaram e partiram,
de mãos dadas com os deuses,
bactérias, sáurios, mastodontes
que ainda procuramos,

na ânsia de saber
como foi que tudo aconteceu.
Esse pulsar cadente
ora nos enche de sustos,
ora nos despe ao sol,
ora se diz amor ou raiva ou dor.

Quando não o sentirmos,
vão dizer que morremos.
E não nos importamos.

Também os retratos envelhecem. Amarelados. Manchados de humidades. O pulsar do Tempo nada poupa. Um dia talvez as nossas interrogações cessem de pairar. Um dia talvez possamos transpor o arco para além do qual alguma luz se mostra. Um dia talvez saibamos da batida e saudemos os sáurios. Entretanto, para cá do arco, vamos contemplando os retratos no fundo das gavetas, lembrando o musgo nas paredes e aproveitando o Sol para nos despirmos.

Licínia Quitério

26.6.06

FAZ DE CONTA


Antoine de Saint-Exupéry - Aguarela

Jogar ao faz de conta com a vida.
Dizer fizeste bem a quem me deixou mal.
Falar do vento forte no meio da calmaria.
Recomeçar a obra de costas para o fim.
Fazer a festa ao cão antes de o ver chegar.
Pular na nuvem quando pisar o asfalto.
Brincar às escondidas no deserto.
Sentir o negro e afagar o branco.
Prender a lantejoula por debaixo da pele.
Enunciar o cheiro das flores por nascer.
Cantar ao desafio com a própria voz.
Trepar à amoreira e anunciar a seda.
Olhar o velho sentado no degrau e
Dizer de um barco que acostou no cais.
Acreditar que o sino é um seno a soar.
Quedar-me à beira-morte e dizer beira-mar.



"...- Se fazes favor... desenha-me um carneiro...
Quando o mistério nos impressiona demais, não ousamos desobedecer. Por muito absurdo que tal me parecesse, a mil milhas de distância de qualquer lugar habitado e em perigo de morte, tirei da algibeira uma folha de papel e uma caneta. Mas, lembrando-me de que tinha estudado principalmente geografia, história, cálculo e gramática, disse ao homenzinho (com um ligeiro mau humor) que não sabia desenhar. Ele respondeu-me:
- Não tem importância. Desenha-me um carneiro."

Que tem a ver este pequeno excerto de "O Principezinho", de Antoine Saint-Exupéry, com o meu texto acima e o título "Faz de Conta"?

Convenhamos que, quando a lógica da vida não funciona, o absurdo é um caminho tão válido como qualquer outro.
Façamos então de conta. Eu faço versos sem o saber dos Poetas. O Principezinho, sem saber desenhar, desenhou um carneiro. Às vezes resulta...

Licínia Quitério

22.6.06

PUTA DE VIDA


Toulouse-Lautrec - Au Salon de la Rue des Moulins

AS PUTAS DA AVENIDA

Eu vi gelar as putas da Avenida
ao griso de Janeiro e tive pena
do que elas chamam em jargão a vida
com um requebro triste de açucena

vi-as às duas e às três falando
como se fala antes de entrar em cena
o gesto já compondo à voz de mando
do director fatal que lhes ordena

essa pose de flor recém-cortada
que para as mais batidas não é nada
senão fingirem lírios da Lorena

mas a todas o griso ia aturdindo
e eu que do trabalho tinha vindo
calçando as luvas senti tanta pena


FERNANDO ASSIS PACHECO


Lembras-te do barquinho de papel? Sim, de papel de jornal. Sempre foste muito exacto. Na vela podia ler-se: "Vende-se cachorro". Foi por causa do peso do cachorro que o barquinho adornou. Não, não foi o vento. No vale, o ar estava imóvel. Por isso o charco sem ondas. Foi o meu olhar que empurrou o barco. Se o cachorro se afogou? Não. Saltou a tempo para o ramo do salgueiro. Tu não viste. Estavas tão entretido a matar formigas. Ontem vi o barquinho aos pés da nossa cama. De vela panda. Não ouviste ladrar? Estavas a dormir, eu sei. Já não te interessas por formigas. Eu ainda gosto dos cachorros escritos nos barcos. Até amanhã.

Licínia Quitério

18.6.06

O QUENTE SABOR


Foto de autor que desconheço

Sonhei com o quente sabor das tâmaras
a polpa cor de açúcar queimado
a trazer lembranças de leite-creme das avós
as fibras a prenderem-se nos dentes
a retardar prazeres a prolongar trabalhos

Acordei na areia da praia e
quando disse bom-dia saiu da minha boca
um fruto sem nome que tomou o caminho
dos navios ao longe.

Fechei os olhos mas não voltei a sonhar
com o sabor quente das tâmaras.

Abandonei a praia e passei a seguir a rota dos navios.



Têm um "o" esculpido no tegumento lenhoso da semente. As tâmaras. Isso sabemos nós, os que fazemos palavras cruzadas. Em pequena, apanhava-as do chão, limpava-as do pó com o avesso da orla da saia e comia-as com avidez, só para chegar depressa ao caroço. Sempre desejei encontrar uma tâmara que fugisse à regra natural e não tivesse aquela circunferência mágica que me intrigava. Parecia-se com um pequenino olho a testemunhar a minha gulodice. Até hoje, nunca me apareceu uma tâmara cega. Também nunca achei um trevo de quatro folhas. Nem vi um elefante branco. Nem uma túlipa negra. Nem sequer estive em Creta com o Minotauro. Mas não me lamento. Uma raridade a vida me ofertou. Alguém me deu a conhecer o sabor quente das tâmaras e me ensinou a rota dos navios. Para sempre. Que mais posso desejar?


Licínia Quitério

15.6.06

JOSÉ GOMES FERREIRA


Postal antigo

Por dentro do perfume das flores

já não anda a tua boca

a beijar as estrelas

na cor do silêncio

- para além do gosto agudo das mucosas.



Agora no luar caído

só uma cadela de gelo

morde o perfume das rosas...


JOSÉ GOMES FERREIRA

Um Poeta hoje injustamente esquecido. Um Homem inteiro, militante das causas em que acreditou. Lutou de corpo e palavra contra a ditadura salazarista. Teve uma vida longa e deixou uma vasta obra poética. Quando o conheci, era ainda um belo homem, com uma farta cabeleira branca, e o seu rosto irradiava firmeza e juventude. Escreveu versos de combate, de indignação, mas também de ironia e de amor. Rosas te deixo aqui, Poeta do meu País.

Licínia Quitério

12.6.06

NATUREZA QUASE MORTA


Paul Cézanne - Natureza Morta

eram mulheres à volta duma mesa.
teciam conversas com linhas da voz.
os olhos desviavam insectos verdes
a zumbirem memórias de outras mesas.

deitavam cartas a convocar futuros.
no fruteiro a natureza quase morta.
no retrato tinham pupilas vermelhas.
como as feras no escuro.

Vou ficar a pensar nessas mulheres. Sem letras azuis que as digam.

Licínia Quitério

9.6.06

DA FUGA


Tocata em Fuga - Pecárovics

Fugir da casa pela fresta do desejo
Seguir o brilho das estrelas
que os olhos construíram
Deitar a mão ao soluço do amigo
e levá-lo contigo
até ao cimo da vontade
mais alta que a mais alta das montanhas
Soltar o grito e aguardar o eco
Se ele vier valeu a pena a fuga
Regressarás em paz à casa
abraçarás a árvore
velarás pelos ninhos e
ajudarás os pássaros
que um dia para a montanha fugirão


Porque fugimos? De que fugimos? Ou de quem? Tantas interrogações cabem dentro deste tema. Dei comigo a pensar numa cantilena em que o rato foge do gato que foge do cão que foge do pau que foge do lume que foge da água que foge... que foge... No fim da história (ou no princípio?) haverá um homem que também foge, sem saber de quê. Seria fácil dizer: "De si próprio.". Mas não me interesso por histórias com finais explícitos. Prefiro que acabe com uma interrogação. Prefiro? Ou será que estou a fugir de pensar no assunto? Quem sabe?!

Licínia Quitério

5.6.06

A LUA

Robert Delaunay - Sol e Lua

Nestes dias solares,
desassombrados,
em que um sopro nos toca,
dissimuladamente,
e se serve de nós
e nos penetra sem pedir licença
e nos põe a vibrar
como um velho instrumento
esquecido de soar,
queria ser um lagarto
imóvel, esverdeado,
determinado a enganar a vida,
filá-la, distraída,
escondida
em ternuras de pomba
e garras de falcão,
saltar,
morder-lhe a mão,
nela deixar os dentes
como quem espeta no Sol
um ferro em brasa.

Poder, enfim, esperar solenemente
a Lua,
Senhora das Frescuras e
cavalgar ribeiros e remansos
.

Licínia Quitério, "Da Memória dos Sentidos"


Lua dos enamorados. De Julieta, em resposta a Romeu: "Não jures pela Lua que é inconstante." Lua dos poetas."Uma noite por ano Uma noite pelo menos/ assaltemos o céu e a Lua aprisionemos" (David Mourão Ferreira em DIDÁCTICA). Lua dos astrónomos a beberem-lhe os eclipses. Lua dos astro-navegantes que até ela se atreveram e lhe roubaram pedras. Lua das nove luas dos meninos por nascer. Lua cheia dos uivos dos lobos e das fêmeas no cio. Lua nova tão nova quanto promessa de Lua. Lua com um quarto a crescer e outro a minguar. Sete Luas de Blimunda para Sete Sóis de Baltasar. Ney Matogrosso e a sua Lua Feiticeira. Lua prata da noite. Lua espelho de cabelos de nuvem. Lua de Pierrot sem Columbina. Minha amiga Lua.

Licínia Quitério

2.6.06

BOA NOVA




Pablo Picasso - Pomba

Sempre esperaste pelo carteiro.
Ele trará a boa nova.
Virá da outra banda desse mar
num raio de lua cheia em pleno Abril
nascida de rimas clandestinas
de frutos maduros de vogais abertas
da dança ritmada do namoro das aves
da branca intimidade dos poetas.
Virá ao arrepio de ventos e correntes.
Com cheiros de sal ou de suor
em papel dobrado envelope fechado
a boa-nova chegará.
Vale a pena esperares pelo carteiro.
Ainda que seja noite ele virá
chamar pelo teu nome como quem diz
destino ou trinca uma maçã.
Abraçarás a carta e não a abrirás
não vá voar de vez a boa nova.
Dormirás noite inteira e acordarás.
Deixarás de esperar pelo carteiro.


A figura do carteiro atravessa muitas histórias do nosso próximo passado. Em livros, em filmes, em canções. O carteiro tem sido uma versão profana do anjo anunciador. Da boa nova, de preferência. A pouco e pouco, vai cedendo terreno a outras entidades portadoras do anúncio. Chame-se "mensagem telefónica" que, à chegada, toca a campainha, ou "correio electrónico " que estampa, no monitor do computador, a imagem de uma cartinha fechada. Novas técnicas, velhos símbolos a darem corpo à mesma ideia: Estamos permanentemente à espera da "notícia" e o seu mensageiro, tenha a forma que tiver, causará angústia pela ausência e sobressalto pela chegada.
Desejo-vos Boas Novas!

Licínia Quitério

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