28.3.12

CORRE, CAVALGA


Corre, cavalga, corre



Tanto mar, tanto ar,
tanta espuma de tempo,
tão alto o céu,
tão funda, tão funda,
essa morte vivida


Corre, cavalga, corre,
mensageiro e mensagem,
aflição e aflito


Corre luz, corre vento,
cavalga o dorso, 
o pescoço e o ventre


Sê a janela e o grito,
o silêncio das rosas,
a paz do suicida,
a ordem e o caos


Cavalga, corre,
ateia o fogo, apaga o fogo,
diz os nomes dos peixes,
devora os peixes


Chora a morte dos anjos


Sê viandante e estrada,
obreiro e construção


Corre, cavalga, corre
e ri, humanamente,
da falência dos deuses
no tempo da alegria, ri


Licínia Quitério


Foto de Rui Medeiros

22.3.12

MULHER


Serás água, mulher, 
quando fores mais líquida 
que a sede que te nomeia a boca 

Vento serás 
se o teu cabelo montar a quadriga do sol 
e for igual ao lume

Árvore serás 
quando o teu corpo for ponte 
e bandeira  de estrelas 

Não tomarás tristeza 
porque animal serás 
de liberdade livre que não sabe da morte

Pedra serás
polida pela mão do peregrino
esperando o milagre
que só tu, mulher, estátua, pó de lágrimas,
serás capaz de de conceber


Licínia Quitério 

14.3.12

MARÇO



Nas copas o mês de Março abre florações de seda pura. Os seios das raparigas enfrentam o vento da tarde e endurecem. Rapazes cortam os pulsos quando os sentem perto. A lua cheia durou três dias e os cães cansaram-se de uivar. Quem olhou o poente cor de sangue viu um cavalo negro a galopar a galopar até ao sol até ao fogo até ao fim. A sujidade das ruas é o despudor da seca a confundir os velhos na contagem dos dias. Nas noites faz-se um tilintar de guizos um chiar de madeiras um cheiro a estábulo. Tempo de demónios de bruxas de almas peregrinas. São os idos de Março dizem os adivinhos os filósofos os poetas as virgens loucas. Ouve-se ao longe o estrépito dos impérios dizem os políticos os doutores os miseráveis. É o amor que chega dizem as raparigas afagando os seios.

Licínia Quitério   

8.3.12

O FUMO

Só palavras de sal para dizer
os dias das cidades
bombardeadas
Lâminas nos dentes dos algozes
a retalhar a carne das mães,
a carne dos filhos
Uma mulher na paisagem
é uma árvore decepada
onde não cantam pássaros
No meu tempo nascem
as cidades de fumo
Mais do que escombros,
 fumo
Cidades secas, silenciosas,
disformes,
sem gramática possível,
sem reflexos
No meu coração uma ave que pia,
um retrato de cidade
chamada Aleph ou Alice,
um estilhaço de espelho,
uma planta carnívora,
salgada


Licínia Quitério

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