27.1.10

AMEI O VERÃO




Amei o verão e as sombras ofertantes
de grutas e desvãos e amáveis
copas  aos tórridos amantes.
Imensa a praia onde me deitei
e mais ninguém pisou como eu pisei.
Eram então os dias em  que o corpo
se  vestia de carmim e açafrão
para receber o desenho dos pássaros
na frescura da lâmina da tarde
e a minha escrita era líquida e nua
a deixar-se tomar por peixes verdes
que um poeta andarilho me oferecera.

Foi claro e breve o tempo da inocência.
A praia essa continua imensa.

Licínia Quitério

18.1.10

HAITI



Com que palavras dizer a ordem das coisas,
a razão das coisas, quando tudo
é temor e raiva e subversão?
Como dizer a leveza do céu
ou a aspereza do chão, quando o céu
e o chão se desenham na poeira dos gritos,
na pele insuportável do silêncio?
Uma cidade desfeita é um monstro a devorar os filhos.
A morte é o espanto nos olhos dos homens, 
o andar deambulante entre ruínas, 
a sede dos vivos,  a arma na mão
de coração a coração,
a assimetria dos corpos,
a náusea, a podridão.
Uma mulher canta cavalgando a dor,
uma criança apressa-se a nascer. 
Que fazer destes dias da ira
no grande afã de esfacelar a esperança?
Como entender a geografia do  humano sofrimento?
Pobre de ti, Haiti.
Pobres de nós.


Licínia Quitério

11.1.10

O GRITO




Quantas vezes o grito é o silêncio
a invadir da velha casa o esconso
e a explodir nas frestas da memória.
Ou choro de criança a construir o sono
onde se criam histórias de gigantes
desajeitados como o voo róseo
dos flamingos  na crista dos sapais.
Por vezes a urgência de uma boca
colada em desespero ao vidro como
se não houvesse promessas de maçãs.
Se for maior que a minha inquietação
o grito será  o arco e a corda e o canto
do  violoncelo a cravejar de estrelas
a infindável noite dos famintos.


Licínia Quitério 

3.1.10

COM O VENTO NO ROSTO




Com o vento no rosto e as mãos despidas
detemo-nos e escutamos
um murmúrio de vozes muito antigas.
Aos nossos pés tombam palavras
fatigadas de saberem tantos mares.
É quando as aves saem da paisagem,
um manto de espuma cobre a praia
e  uma janela se abre sobre o tempo
que somos. O corpo esse nos sobra
dorido e persistente guardador
das marcas de água ou do nosso rasto.

Licínia Quitério 

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