28.6.10

NOITE

Como se não houvesse noite
E a chuva mais não fosse que
A inconstância dos teus olhos
Regando as malva-rosas
E acalmando a secura dos relógios,
Assim tu foste o despertar da terra
E a claridade das vertentes ao sul,
Mesmo que o sul não seja mar
E o amor se esconda para sempre
Na mão que te recusas a abrir.
Transportaste a tocha e o clarão
E acendeste o fogo e iluminaste
O quarto escuro e as letras do meu nome.
Por isso a chuva cai enquanto durmo
Embora seja dia, que não verei
De novo a solidão das pétalas
Encolhidas, rasgadas, chorosas

Por o sol ter falhado o encontro,
O afago, o bom-dia, a palavra
que transporta o oiro e a imensidão.

Licínia Quitério

27.6.10

OS MENINOS


Os meninos sentam-se. Não precisam mais do que de um pedaço de chão. Pouco se olham. Ainda não sentem o fascínio dos espelhos. Tocam-se apenas para lutar. Mais tarde lhes dirão do abraço que magoa. A luta não. Os homens são grandes e não se sentam. No chão, não. Ficam cansados, de pé, olhando os meninos, não vão eles sujar-se no chão. Ou apanharem o bicho que passa, muitas patas, pouco corpo. Os deditos dos meninos seguem o bicho que partilha com eles o chão. Há também mulheres grandes que não se sentam. Cansam-se de ficar de pé, olhando os homens e os meninos. Estão tão contentes os meninos. Não se olham, sorriem e com os deditos desenham o caminho sinuoso do bicho. Tantas patas para tão pouco corpo. Não lhe tocam que os homens e as mulheres, cansados, de pé, assustam-se e gritam. São grandes, estão cansados e têm medo, pensam os meninos. Senta aqui, mãe. Senta aqui, pai. Não sentam. São grandes e o chão mete-lhes medo, como o bicho que já lá vai, tão longe, a rabiar seu  corpo magrinho de pernas tantas. Acabou o tempo dos meninos no chão. Os grandes, cansados, medrosos, dizem: vamos embora. Vão todos sentar-se num animal de corpo grande e poucas patas. Os grandes riem, já não estão cansados, nem sentem medo. O animal grande anda depressa, mas os deditos dos meninos ainda não esqueceram o rabiar do outro, de corpo fino e muitas patas. Desta vez olham-se, sorriem e desenham o caminho do bicho pequenino nas costas dos bancos onde se sentam os grandes que já não estão cansados, nem sentem medo porque não sabem do bicho que lhes caminha nas costas. Os grandes não adivinham os segredos dos meninos marotos que acham que o chão é para sentar.

Licínia Quitério

20.6.10

QUENTE FOI O VERÃO

Era no tempo do estio em que as searas não passavam da lembrança do verde ondear. Os caminhos ardiam e os animais fugiam, as árvores ardiam e assobiavam um bailado de fogo. Veio o medo das bruxas e elas fugiam das chamas que lhes queimavam o nome. Os corações ardiam de uma paixão desconhecida, surgida das matas frias de um desejo devorador e antigo. Falavam de demónios vermelhos vindos de longe para fazerem a guerra. E os homens respondiam: "Nós trazemos o corpo inteiro e os livros da paz". E o medo das bruxas encorpava. Mulheres havia que esconderam as crianças. Era o medo do demónio, do fogo, da guerra, das sombras más que uivavam como lobos, diziam-lhes. O pão, escasso e duro, era fechado nas arcas. E os homens diziam: "Nós trazemos o pão, o leite, o mel e o vinho". No luar se encontraram, afastados, resguardados dos estranhos que diziam palavras estranhas como livro e paz. Lá no cimo, ao longe, as matas estavam acesas, um fogo rasteiro, de devorar restolho e afugentar coelhos. De homens nem sinal. E as mulheres diziam: "Foi o demo que lá passou. De manhã cedo vai-se embora e veste-se como um homem e fala como um homem, com palavras novas como livro e paz". Quando o dia nasceu, os homens limparam os caminhos e lavaram as águas e não  roubaram o pão e falaram às crianças numa língua que só elas entenderam. Já havia mulheres que diziam: "Eles não trazem a guerra. Lavaram a água e limparam os caminhos". Havia ainda os que diziam: "Mil formas tem o demo. Até de anjo se veste". E persignavam-se. No próximo luar, os homens sentaram-se, já mais perto dos que ali pertenciam, abriram livros e leram histórias de encantar. Um cão veio enroscar-se ao pé dum homem que lia. As crianças tinham os olhos muito abertos e diziam "mais" quando uma história acabava. Era já tarde quando se recolheram. De madrugada, uma mulher madura e esfarrapada bateu à porta dos homens. Trazia uma couve. "Façam um caldo, mas não contem a ninguém que eu aqui estive". Era sempre a primeira a chegar para ouvir as histórias. Sozinha, que desquitadas não eram boa companhia. Limpos todos os caminhos, lavada toda a água, lidos todos os livros, os homens partiram. "Afinal eram boa gente". E ouviu-se o choro abafado de uma mulher e o latido de um cão. Os homens subiram a serra, com cautela. Em volta tudo ardia.

Licínia Quitério

18.6.10

JOSÉ SARAMAGO

Este é o tempo em que todos me morrem.


Eu não sou nada e tenho a sorte de ter amado


a grandeza de homens imperfeitos.


Por isso, hei-de voar.


Licínia Quitério



Junho de 2005

Junho de 2010

16.6.10

VOLTAS AO CAMPO




Voltas ao campo, à horta, ao tanque, aos animais,
como se alguma vez ali tivesses pertencido.
Dizes ruína, mas nunca conheceste a infância
das pedras e da cal e do carinho dos homens.
O cheiro dos coentros traz-te lembranças
das ervas que nunca pisaste que o teu lugar
sempre foi o casulo das cidades cansadas
onde deixaste os passos e as esperas.
O telhado está roto, dizes, mas nunca lhe
soubeste a inteireza com que afrontava
o vento e o orgulho com que estancava
a chuva. Agora tens  a solidão nos olhos
e os braços vazios e a memória a pesar
nos ombros e na fala com que dizes voltar.
Perdeste o tempo e o lugar e o cantar
dos pássaros. Cidade foste tu e o teu modo
de abraçar o mundo. Só o amor te salvou
e te mostrou o caminho de volta. Esse que hoje
desbravas e constróis  no abrigo das arcadas
protectoras do sol abrasador que te esperava.

Licínia Quitério

14.6.10

AUTOBIOGRAFIA




Tudo passou por mim nas noites e nos dias:
a beleza dos corpos feitos de gelo ou brasa
fossem de gente ou ave ou seixo de riacho,
mudos como o luar ou com vozes de prata.
Eram bandeiras e choros e imprecações,
marchas negras de fome e arraiais e danças
e a ternura das mães e o desejo das mãos
e a deserção dos sujos e o abraço dos puros.
Houve também as paredes da casa e a janela
e a porta, como houve as minhas dores
recolhidas, fechadas. Aberta sempre a casa
a quem trouxesse o lume e a boa nova
ou precisasse de secar a roupagem dos olhos.
Com a fragilidade de um cristal de rocha
ou a exactidão e a força de uma teia de aranha,
por tudo vou passando e tudo em mim deixando
uma mancha de sol, uma breve lantejoula,
uma folha orvalhada, uma luz partilhada,
um amigo certo, uma palavra amada
e a loucura das rosas esquecidas do deserto.

Licínia Quitério

10.6.10

CLARISSE 15


Muito tempo passou desde que Clarisse folheou o último álbum. Nesse ano a invernia foi intensa, cruel, não deixando abertas no céu para que o sol  aquecesse o peito enregelado. Clarisse fingia-se sem tempo para reviver passados, numa moleza encostada a lareiras apagadas e a conversas alongadas com gente de outros álbuns. Já mal recordava os lugares e as músicas e os silêncios irrepetíveis bordados de pétalas de flores que ninguém se atrevia a nomear. E  caía numa melancolia de romance quando as rolas vinham beber ao tanque de regas, tão precisado de obras como se alguém ainda se importasse com a secura da terra que o verão impõe. Já a primavera ia adiantada quando um estremeção a fez virar-se, rodando sobre a cintura, resguardando a segurança dos pés, temendo por instinto uma tontura. E ela veio, leve e distante, sem exageros, como em sonhos. Do sonho seria a rola de peito róseo a que faltava uma asa e que a fitava, com seu olhinho de vidro, à beira de água, sem beber. Clarisse entendeu o sinal e foi finalmente folhear o último álbum. A humidade do inverno fizera das suas e um rosto que jurava ter conhecido estava agora manchado, de contornos esbatidos, como se fosse uma pintura a quem o desgaste não tivesse porém ocultado a serenidade e a beleza que se desprendem da palavra amor. Clarisse sentiu que a história tinha chegado ao fim e que não voltaria a folhear os álbuns. Antes de o fechar,  viu uma rosa branca, ainda estranhamente branca, a segurar um poema. Ilusão, só podia ser. A rosa e o poema tinham partido há muito com o homem do retrato manchado, sereno e belo, que o tempo não deixou que noutro se tornasse. Os olhos de Clarisse continuam verdes, verde-água, quando for tempo disso, e a enfrentar a estrada onde nunca faltam poemas e rosas brancas.

Foi esta uma maneira de contar a história de Clarisse, devoradora de passados e teimosamente construtora de futuros.

Licínia Quitério

8.6.10

CAMINHOS



Nos caminhos da sombra se acoitam nossos medos.
Ah não fossem as sombras como andariam loucos,
em desatino, a desfazer a nossa gargalhada, a desatar
o nosso abraço, a apagar o lume que o amor acende,
a ocultar os astros novos que as noites nos ofertam.
Libertos ficam os indícios das pedras que a outras
pedras nos conduzem, sempre mais amáveis, mais
redondas, mais lisas, mais conforme a lassidão do
nosso andar. E as cores, as cores, que nos traçam
os mapas na pele, nos olhos astrolábios, nas mãos
oceanos de gelo, lava de vulcões, nos braços a prata
do devir dos amantes, na boca o oiro  com que
se beija um filho ainda por nascer ou já entregue
às pedras e aos medos e ao brilho imenso de viver.

Licínia Quitério

6.6.10

PROVAVELMENTE




Provavelmente  nada seria igual
se um tritão inda houvesse, meu amigo,
meu escravo, meu senhor, minha casa de mar.
Os tritões agora são de pedra,
nos lagos e nas fontes,  fantasias
dos deuses depois da criação 
de vaidades e ambições do tamanho do sol,
da via láctea ou da  ínfima partícula
em que nenhum nome cabe para poder existir.
O tritão que eu sabia dos desenhos solares
que só as crianças constroem nas areias
era gentil e sorria quando eu o cavalgava.
Meu escravo, meu senhor,  levava-me
a viver minha casa de mar com peixes 
cor de luz e tudo o mais que eu não tive
que o meu amigo em pedra se tornou
e a criança assombrada na areia ficou.

Licínia Quitério

Apresento as minhas desculpas por, durante um tempo que espero breve, não visitar os vossos blogs, deixando os merecidos comentários. Grata pelas amáveis opiniões que sempre aqui fazeis o favor de expressar. Deixo-vos o meu terno abraço.

Licínia

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