27.12.07

ÁRVORES



as árvores não dormem
cumprem o trabalho maior
de fabricar promessas
entre o céu e a terra

no escuro
antes do fogo


Licínia Quitério

15.12.07

POSTAL


Aqui vos deixo o meu postal de Boas Festas.

Porque ainda enfeito os meus sonhos de cores e de luzes e de brilhos e de laços e de frutos e de sinos de festa.

Para que os vossos corações partilhem este banquete.


Licínia Quitério

10.12.07

GEOMETRIAS






Concretas as nossas casas de todo o ano. Altas, cada vez mais altas. E nós, por trás dos vidros, compondo pacientemente novas geometrias.


Licínia Quitério

1.12.07

PERCO-ME









perco-me de luz pelas fronteiras
do velho mundo em canto amigo

ah as gôndolas nos canais de veneza
ah as casas brancas de mikonos
tão saborosamente iguais
às casas brancas da nossa aldeia

perco-me de música pelos canaviais
e escuto os segredos dos príncipes
e o assobio do guardador de rebanhos
e a vingança do flautista de hameln

perco-me de cor pelas searas
quando as túlipas se rendem loucas
ao negrume oblíquo dos corvos

perco-me de ternura ah perco-me
pelos homens de sol no meu país de sombra


Em louvor de todos os que, neste tempo de cerco, não se conformam, não se rendem e avançam com o sol nas mãos.

Licínia Quitério, "De Pé sobre o Silêncio"

26.11.07

OS PARDAIS


Pouco basta para que
um astro se acenda
sobre a mesa da tarde

Pode ser o fio de voz
de uma menina
e as suas mãos morenas
segurando um poema
que escreveu

Vendo bem não são as mãos
antes projecto de asas

Sejam sempre bem-vindos
os pardais

São aos milhares. Disputam poisos nos ramos das árvores da praça centenária. Um coro de piados estridentes encorpa e inunda os ares e as ruas e as casas em volta. São os pardais de fim de tarde. Qual deles deu o toque de recolher? Com que sinais dizem "vamos dormir"? Ficam mudos quando a noite se instala. São folhas de sangue quente nas árvores despidas pelo inverno. Perto dali, uma criança diz um poema. Não é que me pareceu um pardalito, desprezando a noite, a despertar?


Licínia Quitério

14.11.07

SE EU FOSSE


Se eu fosse uma estrela e medisse os anos-luz do meu brilhar, talvez eu desistisse e quisesse, entre rasgões e penumbras, descansar.

Licínia Quitério

7.11.07

BEIRA-MAR



Os olhos das mulheres
cavalgam as praias desertas
e a acalmia das ondas

Ficam verdes os olhos das mulheres
no seu afã de adivinhar os peixes

Águas-marinhas crescem-lhes nos dedos
longos longos

Há estrelas-do-mar a rematar
as tranças de meninas
que chegaram do longe longe

Debruçam-se serenas
sobre a caligrafia andarilha das gaivotas
a ler histórias que os netos lhes contaram

Antes que a tarde as envelheça
acendem nas areias fogos altos
e pintam as cores do sol poente
e cantam líquidas melopeias
e cantam e cantam
as mulheres da beira-mar

Volta o azul. Devagarinho. Quado menos espero, em forma de poema. Azul de calmaria, de segredos revelados, de horizontes perfeitos, de sabores antigos de baunilha e erva-doce. Azul de me sentar à beira-mar.

Licínia Quitério, "De Pé sobre o Silêncio"

31.10.07

VIDRO







Tão frágeis estes dias
de pé sobre despojos
de batalhas pensadas
no gume dos sentidos

Dormem as cores
no abrigo da boca
temerosas do vento
desejosas do lume

Horas fora da lei
do tempo dos insectos

Horas acrescentadas
ao tempo dos altares

É o tempo do vidro


O azul que escrevi no vidro diluiu-se. Não o posso repor aqui. Também a memória o recusou.

Licínia Quitério

24.10.07

AS ESTEVAS








Já vi manhãs
de acontecer ao sul
namoro de estevas
com pinheiros do norte

Bem ao norte do norte
como o poeta diria

Aquele que da alegria
nem a rima sabia
porque não era esse o seu ofício

Era da poesia o respirar

Assim as estevas pela manhã




Não me venham dizer que isto não são estevas. Hoje são estevas, namoradas de pinheiros. Também vos digo que os pinheiros não serão do norte para sempre. Só em certas manhãs, quando as estevas por eles quiserem respirar.

Licínia Quitério

16.10.07

PELE


A pele não é só palco

de noites de cetim
com ânforas de lume
a queimar a morder

Nem só traje de lua
a brilhar a bailar
em trama de feitiços
a chamar a prender

A pele é um continente
onde se cravam gritos
onde se bebe o sal
até secar as fontes
onde se lêem nomes
de rochas ainda quentes

Viam-na, à noitinha, subir os trilhos da serra. Como um grito das vestes sempre negras, uma longa écharpe vermelha de pontas franjadas. Diziam as velhas que lhe espiavam o abrir da caminhada, afastando, com as pontas dos dedos, as cortinas de renda das janelas antigas das casas antigas, que era uma jovem de pele morena, talvez uma sarracena como as dos livros de histórias que tinham lido quando jovens. Diziam os rapazes, embriagados pela dança das noites novas, quando a viam de madrugada, na descida da serpente, que a pele do seu rosto era branca, branca como o branco da lua cheia...

Licínia Quitério

9.10.07

NÃO DEVO


Não devo falar de flores
em tempos favoráveis
à dor das oliveiras

Nem das verduras fáceis
em horas amparadas
a bordões nodosos

Tão pouco do veludo
do café negro pela manhã
agora que os comboios
perderam a estação

Direi então devagarinho
do desenho das dálias
na memória dos canteiros
da palpitação das asas
da borboleta em fuga
do silvo dos comboios
rasando as oliveiras


Hoje não me apetecem histórias de letras azuis. Fica aqui somente o azul de histórias por escrever. Espero que entendam.

Licínia Quitério

2.10.07

ESTRANHEZA



Poderás encontrar-me
na hesitação das manhãs
por entre os passos da chuva miúda

É quando ergo os braços
para as altas frondes
onde deixei na véspera o coração

Não me procures na tarde
quando a minha pele é um reflexo
na estranheza das montras
anunciando o outono


As folhas secas do plátano voltaram a bater-me na janela rente ao chão. Deixaram minúsculas manchas no vidro. Desaparecem quando lhes sorrio. Depois voltam. Os habituais recados de outono... Estranho, não é?

Licínia Quitério

25.9.07

LUZES


Sentinelas de fogo
as luzes na cidade

Olhos sem pálpebras
a vigiar encontros
clandestinos
buscas de pão ou
outras sobras do dia
e a magreza das árvores
no exílio

Só no ventre das casas
defendidas das luzes
se acoitam férteis
os humores da noite

Era a sombra de um homem na noite da cidade. Aos ombros uma manta. Ou os restos dela. Das mãos pendiam sacos. Só os sacos eram brancos. Sentava-se no degrau amplo, abrigado, patamar da grande montra. Deitava-se, ali mesmo, quando as luzes da montra se apagavam. Deixava de ser sombra. Era agora um homem deitado no escuro. Como tantos outros.

Licínia Quitério

18.9.07

ILHAS


estas ilhas de mim
nem mar nem rio as pode reclamar

tiveram escarpas
onde gritava a flor do tojo
amáveis enseadas
a resguardar ladrões e enamorados
clareiras de cantares e dança em pontas

incêndios lhes calaram a verdura
tufões e malfeitores as desfearam

e os coelhos morreram
e as aves voaram para norte

estas ilhas de mim
ressuscitadas

"Era uma vez uma ilha, solitária como todas as ilhas, preguiçosa como não há muitas, que dormia até tarde, aconchegadinha no seu cobertor de névoa...". Pensei contar uma história de ninar em que a heroína era uma ilha. Até já tinha princípio, meio e fim. Ideias de serões prolongados, a adiar repousos. Desisti quando ouvi um choro de criança no andar de cima. Ilhas não habitam sonhos de meninos. Só mais tarde, quando nos foge a terra firme, nos pensamos ilha e começamos a ter medo dos tufões. Assim a história foi só o seu princípio. Se houver quem a queira continuar...

Licínia Quitério

11.9.07

EU SEI


Eu sei que devia falar
do relevo da cal
da agonia das nuvens grávidas de céu
do rolar do medo no olhar dos pombos
da gente nos terraços respirando a tarde

Mas prefiro dizer que
à luz duma lembrança
o mundo clareou como se a madrugada
na fundura do dia aprisionada
por mim se libertasse esquecida de morrer

Eu sei que isto de escrever poemas de amor a rimar com dor passou de moda. Sei que soa a banalidade aquela madrugada dita aprisionada. Sei que não valia a pena ter tentado um poema mais, com palavras de céu e cal e pombos. Sei, mas asseguro-vos que a serpente de nuvens que me caiu nos olhos, quando respirava no terraço, me fez, por momentos, perder o tempo e o lugar. Foi assim, como vos digo.

Licínia Quitério

4.9.07

ACONTECER


Aproveitando a nesga do silêncio,
sentamo-nos no prado verde-luz
e varremos o céu com olhos de água.
No entrelaçar dos dedos magoados,
aprisionamos desejos de regressos.
Ofertamos os ombros à neblina,
o gosto de gengibre pela boca.

Por vezes acontece um fim de tarde assim -
a sombra do salgueiro a afagar-nos a nuca,
o sono de menino a embalar-nos o colo.

Tão breve, tão breve este sangrar do dia.

Não foram aqueles parêntesis curvos a enquadrar-lhe os cantos da boca e dela se diria uma jovem mulher. Chegou sozinha, transportando na cintura o requebro de ladear os ventos. Era alguém sem pressa, já sem pressa, posso dizer. O andar encaminhou-a para a relva fresca. Um velho choupo ofereceu-lhe o tronco erecto, afirmativo do labor das seivas. Nele apoiou um ombro e logo a cabeça e logo o braço a procurar o quanto podia alcançar da impávida figura. Provavelmente, foi o tremeluzir das cores da tarde que lhe trouxe aquela estranha vertigem. Quem passou pressentiu um desacerto na mulher. À pergunta: Sente-se bem? respondeu baixinho, com um sorriso a acentuar a curva dos parêntesis: Sinto. Tenho uma flor no cabelo. Há tanto tempo não acontecia...

Licínia Quitério

28.8.07

VERÃO


Enluvámos as nossas mãos de terra
e revolvemos o coração do verão
na busca de segredos vegetais

Palpámos a firmeza das raízes
e o disfarce de bolbos pardacentos
mátrias infames das ervas da traição

Jurámos arrancá-los um por um
antes que o verão se vá daquela rua
e a esperança de o rever se desvaneça

De pé sobre o cansaço da nossa fortaleza
inda cumprimos a hora de dizer
a beleza das rosas dos bichos do luar

Licínia Quitério

19.8.07

GATA



Apareceste e colaste nos meus os teus olhos de esmeralda. Ofereci-te comida e aceitaste. Abri-te a porta da casa e entraste. Visitaste os meus lugares e elegeste o banco alto onde poisaste. Como uma rainha, no seu trono de aperceber o império. Consentes que te acaricie, apenas com o olhar. Quando ficamos frente a frente, reclino-me no silêncio a adivinhar-te. Vigilante de templos derrubados, confidente da solidão dos céus, feiticeira temida e acossada, musa bem-amada, caçadora intrépida e implacável, fêmea cumpridora de namoros breves e doces maternidades. Sabes do meu riso e do meu pranto. Eu nada sei de ti, altiva, solitária, sedutora. Gata ou reflexo de uma deusa? Haverá uma noite para eu transpor o muro e ir ao teu encontro. Ouviremos, pela única vez, o coro das estrelas reclamando o brilho dos teus olhos, o nada das minhas mãos.

Licínia Quitério

13.8.07

PEREGRINAÇÕES

No tempo das grandes secas
os pobres sugaram as fontes
até ao finíssimo veio de prata

No tempo das grandes fomes
os pobres devoraram os olhos
e a pele e a carne das casas

Os pobres deixaram - como sempre -
as cores ásperas na pedra

Esvoaçam os véus do tempo
nas harpas do vento leve


Mostrei-te o velho caminho da fonte por onde meu pai me levava a passear, nos meus anos meninos. Só o caminho (e mesmo esse tão diferente), que a fonte levou-a o asfalto e a sede insaciável dos homens da vila nova. Persistem os sinais da água na voz que por mim disse: Como gosto de peregrinar pelos santuários em que me guardo...

Licínia Quitério

6.8.07

DA ESPERANÇA


Sitiados
deglutimos a raiva
até estalar o grito
que rebente o dique
e inunde a paisagem

de laços e sementes

Não mais o céu será de fogo


Licínia Quitério


"Na realidade, a minha arte é uma confissão feita de minha própria e livre vontade, uma tentativa de tornar clara a minha própria noção da Vida... No fundo é uma espécie de egoísmo, mas não desistirei de ter esperança de que, com a sua intervenção, eu possa ser capaz de ajudar outros a atingir a sua própria clareza."

Edvard Munch

30.7.07

E...



Permanece a memória
na escuridão dos armários e
na lã e
na seda e
no desenho do corpo e
na linfa dos frascos e
no forro das gavetas e
nas nervuras das folhas secas e
na tinta dos livros e
no odor da canela e
nas casas translúcidas
dos sonhos repetentes

Voláteis partículas da memória
transportam o fogo e
o gelo e
a fome e
a sede e
o desejo de um absurdo plenilúnio e


"O que aconteceu para escreveres isto?" - perguntei.
Tentou explicar: - "Foi uma mistura de cheiros na noite. E as cores iam mudando. E eu pensava em bolas de sabão. E não era lua-cheia. E era outra a noite. E parecia um imenso retorno. E... "

Licínia Quitério

23.7.07

REDES


Esplêndidos mantos
cobrem-lhe a recente nudez.
-Bordados de mãos exímias
no descanso das searas.-
Nunca os seus pés descalços
afloram as feridas da terra.
Em volta do leito abrigam-se
animais chegados de nenhures.
Ergue as vozes alheias e
por elas respira nas alturas.
Os olhos de água fresca
devassam a traição das redes
a ocultar a avidez dos poços.
Ri e canta e paira e avança .
Para trás ficam as redes
tecendo pragas inúteis.


lembras-te? os pescadores tinham ficado em terra a consertar as redes. pelos braços trepavam farrapos de algas. trocavam frases velozes, acentuadas de marés vivas. pareciam tranquilos. sabiam os nomes de todos os peixes. não nos viam. estavam muito atentos às aves marinhas. vinham entregar-lhes recados das ilhas. eu não conseguia desviar o olhar do emaranhado dos fios. havia pequenos caranguejos prisioneiros. alguns tinham perdido patas e continuavam a lutar. o pescador com cabelo cor de palha livrou das malhas um lutador. mirou-o. pronunciou uma palavra salgada. devolveu-o à água opaca do cais. lembras-te de me teres passado o braço pelos ombros? lembras-te de me teres dito, com falso ar de zombaria: já estás contente? este safou-se.

esta noite sonhei que era um caranguejo e tinha perdido uma pata. no forro do dia tenho repetido: redes, redes, redes. não sou capaz de recordar a cara do pescador com searas maduras na cabeça.

Licínia Quitério

16.7.07

AS VETUSTAS PEDRAS



As vetustas pedras da noite
te dirão
da decepção
das andorinhas
ao perceberem as casas sem beiral

Não chores
Suspende apenas
um pequenino susto
na mais alta ramada
do caminho

E observa
as poderosas colunas
amparando ruínas

Licínia Quitério

9.7.07

VIAGENS




Soltamos a âncora e largamos as velas
onde está escrito o mar
É urgente partir e demandar novas areias

Acostamos e caminhamos descalços
sobre o pó de pérolas antigas
Se for preciso adormecemos encharcados
de sol e de intraduzíveis murmúrios

Depressa nos cansamos do ardor na pele
do cheiro intenso das algas ressequidas
das grinaldas da festa fora da nossa aldeia

Faz pouco que chegámos e já os nossos braços
pedem o porto a estrada o abrigo
o minúsculo ponto de partida aonde é urgente chegar
e ancorar e projectar viagens
até areias novas algas secas e grinaldas de festa
que nos trarão saudades da aldeia

É ainda um menino, aprendendo a servir as mesas dos homens e das mulheres e dos meninos em férias. Nervoso, afastando a melena escura do escuro do olhar. Senti que queria entrar na conversa. Fiz-lhe perguntas vagas. Agarrou-as com avidez e desatou a falar. Dele. Do pai que tinha ido embora. Da mãe que o tinha tirado da praia. Da escola que o tinha roubado ao mar. Diz Mar como quem diz Vida. E ri baixinho, provocando o sobressalto dos ombros. Agora que lhe tiraram os barcos, sonha com outros nomes. Diz Luxemburgo, Espanha, Andorra. É por aí que passará o futuro, depois de concluído o curso de mecânica. Já se vê na "estranja", a família reagrupada, ele no seu carro, comprado com o seu dinheiro. Ele que tenta explicar-me o que é "passar a noite no mar", abrindo os braços em leque e fechando os olhitos como homem que falasse de corpo de mulher. Viagens fará este menino. E, sempre que puder, voltará para se sentar na sua praia, esperando o barco que o levará de noite ao mar. Dei-lhe um beijo, por despedida. Não se mostrou surpreendido. Deu-me um sorriso bonito e apressou-se a levantar os pratos sujos.

Licínia Quitério

30.6.07

JACARANDÁ

Corridas as estradas
de chumbo e oiro e assombração
Silenciado o restolhar das follhas
nos pátios interiores
Sepultados os cães vadios
sob a raiva dos transeuntes de domingo
Apagadas as cores
das línguas maternais
nos discursos dos guardiões do templo
Vendida a onda verde das searas
e ninguém a reclamar colheitas
Perdidos os olhos vítreos da boneca
Afogadas em jarras as rosas de toucar

Sentada agora estou
- ou assim me vejo -
no sorriso lilás do jacarandá
florindo os dedos longos da idade


O nome decerto lhe foi dado por vozes quentes, tropicais. Só cantando o podemos dizer, a saborear-lhe as sílabas, prolongando a alegria da tónica: Ja-ca-ran-dáá. As flores brotam, triunfantes, decididas, a pincelar o negro dos braços nus. Dizem li-láás nos nossos olhos, na sala de espera de mais um verão. Retiram-se, discretas, quando o recorte verde das folhas se anuncia. Todos os anos as procuro nas velhas ruas da cidade. Receio que um dia lá não estejam. Quero que fiquem para contar do meu sorriso sazonal e da minha voz dizendo a quem passa: Vejam como estão lindos. Já floriram os ja-ca-ran-dáás!!

Licínia Quitério

13.6.07

DIAS

Dias com um poema por escrever
a roer-me por dentro
a querer espreitar na fresta do desejo
de enfim poder dizer
como foi construído este alvoroço
quem acendeu o lume
e depois o apagou
onde mora o dono da casa que vagou
porque não morre o pássaro
se lhe morreu o canto

Dias ondulantes
de passos hesitantes
de febres e de frios
à espera do poema
que transporte a palavra
a enorme e única palavra
capaz de traduzir o nome da cidade
onde em verdade habito
e respiro e me deito



Sentia um cansaço frio que lhe escorria pelo corpo. Podia ser um manto líquido, herança das últimas chuvas. Caminhava como se o dia fosse uma encosta íngreme, sem sombras vegetais. Olhava o chão com a indiferença dos velhos nos jardins. Apoiou-se na beira de um poço e viu no fundo da água uma janela de luz difusa. Alguém passou e lhe disse: O que faz aí? É melhor afastar-se. Obedeceu. O cansaço era tão grande que não conseguiu dizer: Talvez lá em baixo haja um poema a descansar.



Licínia Quitério

P.S. Parece-me que o Sítio do Poema anda um bocadinho cansado. Por isso o vou mandar de férias. Voltará à conversa com os Amigos, revigorado por fortes ares, tranquilas águas. E deixa-vos beijos.

29.5.07

TEMPOS


Sou do tempo da negrura
dos becos nas cidades
cansadas de bandidos
Era quando se dizia bidon-ville
ou nova-iorque ou liberdade
com os dentes cerrados
com as portas cerradas
Era um tempo de carroças
de ciganos atulhadas
de cantares e imprecações
Foi um tempo de amarrar viagens
nas varandas altas
dos aeroportos
nos cais imensos
dos comboios imensos
de mais partidas que chegadas

Sou também do tempo
do incêndio das papoilas
do fundo respirar dos becos
da alegria dos escravos
e do susto dos faraós
Nesse tempo soubemos abraçar
com igual ternura
a ferrugem dos cascos dos navios
e a velha prostituta de amesterdão

Sou ainda deste tempo em que me sento
na cadeira-baloiço de um cow-boy
e espero novas de darfur ou bombaim

Vou ficar neste tempo de remorso
e de preguiça como um deus a descansar


Licínia Quitério



21.5.07

NASCENTE

foto gentilmente cedida por uma Amiga



Vem, sem avisares,
dizer-me que provaste
a água fria das nascentes
e gostaste
e eu vou gostar de lhe tomar
o gosto em tua boca.
Dirás da força dessa água
na fonte inicial que procuraste.
Eu vou senti-la
em contenção na dobra do teu braço.



Vem dizer-me
o som fantástico da gruta
por onde a água escorre
e às vezes se detem
adiando a viagem.
Eu vou escutá-lo em tua voz
e não sentirei medo
que tudo o que me trazes
vem do sítio exacto
onde as flores aguardam
as águas do meu peito.


Chamavam-lhe Zé da Fonte. Todos os dias, mal o sol acordava, caminhava até à nascente modesta, escondida por entre pedras gastas e ramadas pendentes. Ajoelhava-se e lavava os olhos, longamente, com as mãos inundadas de água fria. Depois tirava do bolso um naco de pão que mastigava devagar, muito devagar. Já de pé, dizia baixinho: Até amanhã, Mãe.

Ninguém lhe conhecia família. Não se poderia dizer que idade tinha. Caminhava aos saltinhos como um rio sobre leito pedregoso. Havia quem o temesse. Havia quem o adorasse. Por uns dias ninguém o viu. Procuraram em redor da fonte. Nem rasto.

Um corpo apareceu a boiar no ponto em que o ribeiro que nascia da fonte se encontrava com outro ribeiro nascido de outra fonte. As pessoas ficaram pesarosas. Coitado do pobre Zé da Fonte. Como foi que isto sucedeu? Só a Rosa Maria, que também caminhava aos saltinhos e tinha olhos cor de musgo, soube explicar, na sua voz murmurante: Voltou a ser água. Um homem tem de cumprir o seu destino.


Licínia Quitério

15.5.07

DIAFRAGMA

"Silêncios e Sombras" foi o último poema que nos deste.

Mas tu foste LUZ.

Obrigada, S.



Licínia Quitério

14.5.07

INFÂNCIA


Tenho estado a pensar que
a infância era do tamanho
da casa da minha tia -
nem muito grande nem muito pequena.
Na conta exacta dos meus anos
a que os adultos chamavam
felizes e despreocupados.
A casa da minha tia
também tinha o feitio da minha infância.
Era como um brinquedo grande
que me fazia imaginar histórias
que um dia eu havia de contar aos meus filhos.
Tinha uma parede forrada de papel pintado,
a imitar um jardim para onde abria uma grande janela,
igualmente pintada.
Eu abria a janela e regava com um regador de cartão
as plantas viçosas que estremeciam contentes comigo.
Na sala, havia uma janela, janela mesmo,
e sempre a minha tia dizia: cuidado
não te debruces.
(Ainda hoje gosto da palavra “debruces”
que há muito deixaram de me dizer.
pelo menos, com aquele tom de voz
de almofadinha morna.)
Sem me debruçar,
eu regalava-me a ver as janelas dos prédios
para além do jardim, jardim mesmo.
Pessoas abriam e fechavam as janelas
e eu podia distinguir as mãos, os ombros,
as cabeças e os olhos.
Bom, os olhos só os adivinhava
(azuis, como na minha família não havia.)
e com eles enfeitava livros cheios das histórias
que um dia havia de contar aos meus filhos.
Agora que já não há a tia
nem a casa com jardins de papel e
nem sei se os olhos seriam azuis
quando abriam e fechavam as janelas,
agora dedico-me a recordar a infância
que nem sequer sei se foi a minha


Licínia Quitério

7.5.07

ANOITECER


Por vezes não é mais do que uma sombra
No soalho à frente do teu passo
Por vezes dizes – vai-te
E arredas a cortina

Por vezes tem contornos de animal
Cansado e ferido
Não sabes se avançar ou recuar
Não sabes se gritar ou emudecer

Não te ensinou o berço o anoitecer


Levantava-se cedo. Quase sempre. E cantarolava enquanto abria as portadas e arredava as cortinas. Brincava com o gato ainda de olhos piscos, ajeitava as flores nas jarras, fazia um café que aspirava com delícia e rodeava a chávena com a concha das mãos. Seria sempre assim.
Lia quando tropeçou na frase "caiu a noite". Um ligeiro aperto no peito, uma sombra no chão da sala, a quietude do gato. Correu para o espelho e ele devolveu-lhe o rosto enrugado, baço.
Como podia não ter dado por tantas rotações e translações? Foi esse o instante em que percebeu que anoitecer não é um verbo. É uma oração.


Licínia Quitério

1.5.07

ABRIL E MAIO



Sentado no degrau do mês de Abril,
Assim te quero.
Muitos livros abertos no olhar
O das perguntas ainda sem resposta,
O dos enigmas dos sonhos de cristal,
Os de aventuras de heróis,
Sem nome e sem morada,
E os outros, lavrados de paixões
Incendiadas de manhã
E à noite amortecidas.

Assim te quero.
De mãos limpas do pó e das ofensas.
Os braços tensos pela espera
De outros braços.
No desalinho dos cabelos,
Os alvos, luminosos fios
dos tempos de passagem.

Só não te quero se não cantares.
Que a tua voz fala de Maio
E é por ela que Abril há-de voltar.

Era Abril quando a casa me espreitou. Uma velha menina solitária, a descansar as suas pedras nuas. A porta entreaberta a convidar o cheiro das flores, o piar das aves, o rumor das árvores tocadas pela mornidão da brisa. Assim eu poderia falar da casa perdida na paisagem sem homens. Não consegui. Se me perguntam onde a vi, digo: Está onde Abril não chegou. Um sonho em ruínas, rodeado de mal-me-queres. A porta, essa sim, ainda entreaberta. Na esperança teimosa de um Maio que bem-lhe-queira.

Licínia Quitério

25.4.07

25 DE ABRIL

Só tarde fora o meu novo PC iniciou a sua vida activa.
Não me deixou falar de Abril como queria e devia.

Quando o admoestei pela demora, disse-me:
"Também Abril tardou. Mas chegou."
Hei-de descobrir quem o programou tão assisadamente.

QUE VIVA ABRIL NOS NOSSOS CORAÇÕES
!

Licínia Quitério

19.4.07

TRISTEZAS



Digo-me quando triste
e nas palavras ponho incenso
e deixo arder as velas
até queimar as mãos
No ar arrisco frases
que se vestem da textura dos crepes
e são ágeis como o corpo das medusas
capazes de bailar no mar
sem o tocar

Poderia dizer-me
ausente ou indiferente
como os olhos dos loucos
como os olhos da fome
mas tristeza não é fome nem loucura
Digo-me quando triste
e sei porquê


Nasceu ali sem se fazer anunciar. Uma plantinha minúscula, sem brazão. Não davam por ela. Inesperadamente, num dia triste de inverno em despedida, floriu. Como um floco de neve poisado no canto do degrau. A senhora da casa reparou nela, tocou-a num afago e passou a dar-lhe os bons dias. Jurava que a flor lhe respondia com um breve estremecimento. Resistente, a plantinha com sua flor de neve e olhinhos de oiro. A primavera chegou e ela ali, muito firme, muito serena, sempre discreta.Contou-me a senhora da casa como triste ficou no dia em que o degrau se sombreou de luto por lhe terem arrancado a companheira. Disse: Apeteceu-me chorar. Pudera! Quem não chora quando perde um amigo com olhos de oiro?

Licínia Quitério

12.4.07

ARTES



"LES TROIS ARTS" - óleo sobre tela de JÚLIA CALÇADA

Só podia ser a sépia, respondia. O que a pintora queria mesmo é que fosse um quadro branco que desse a ler o cansaço. Tentou, mas sem êxito. Não encontrou leitor. Só a tal bailarina o entenderia. A tal, a que dançou voando sobre os sons que recusavam o silêncio. Talvez tenha tocado em pontas o chão sublime de sons inaudíveis. Quanto tempo dançou? Dizia: Sempre. Como quem assina o próprio nome. Não podia parar o diálogo com o pianista, o que conhecera tocando uma melodia que nunca ouvira. Construída de lamentos de ervas pisadas e de risos de malmequeres ao sol. A música tecia-lhe as vestes e o piano tocava sozinho se as mãos dele vinham guiar-lhe a cintura. Quando a música parou e as mãos se esfumaram, um cansaço branco, muito branco, a envolveu. Deitou-se sobre o piano, o cetim das sapatilhas no teclado a desenhar um acorde extravagante. Ela entenderia a brancura do quadro. Mais ninguém.


Esta a minha resposta a um desafio de uma rosa sem espinhos chamada Maria.

LICÍNIA QUITÉRIO

8.4.07

ANIVERSÁRIO

Digo? Não digo? Digo. Este blog foi criado faz hoje um ano. Eu sei que isso pouco acrescenta à vida que lhe dei. Um ano é só um ano, é só um ano. Mas devo ao Sítio do Poema esta meiguice. Ele tem sido muito amável para comigo. Não se limitou a ser um suporte virtual de coisas que escrevo. Não cumpriu o mero papel de montra. Deu-se. Agarrou-se aos fiozinhos invisíveis que com ele se cruzam e desvendou caminhos e encontrou pessoas e falou com elas e delas fez amigos. Aceitou o figurino que lhe dei e não pediu outras roupagens. Diz que se sente bem assim, por agora. Pus-lhe uma folhinha alaranjada ao peito e disse-lhe que se chamava plátano. Ele sabe que não é, mas não me desmentiu. Com ela se vai anunciando em visitas a amigos. Atreve-se a fazer comentários, mais ou menos sérios, mais ou menos brincalhões. Nem sempre muito acertados, talvez porque nem sempre acorda com a cabeça no lugar. Abre um sorriso que só eu vejo quando lhe deixam recados bonitos, generosos. Muito mimado este blog. Quando decidi colar-lhe no vidro da janela fotografias que eu faço, fez um ar de desdém e murmurou: “Atrevimentos...”. O certo é que se conformou e ainda não rejeitou alguma. Paciente, este meu blog. Quando estou muitos dias sem lhe dar um post, sinto-o puxar-me pela manga, como a dizer: “Então? Estou farto de descansar.”. Enérgico este blog. Um dia destes deu em refilar e disse-me: “Eu não pedi para nascer!”. Algum de vós o ensinou a dizer isto?

Vai ficar surpreendido quando vir que hoje não tem poema, nem foto. Não faz mal. Depois explico-lhe que há sempre um dia em que descobrimos que alguém mudou as cores da nossa casa sem nos perguntar. Assustamo-nos, mas continuamos a habitá-la.

P.S. Em nome dele, o meu agradecimento a todos vós.

Licínia Quitério

1.4.07

ÁGUAS


Tudo era água
e eu deitada nos leitos curvilíneos
das sereias
Era um canto longe
e eu dormente na viagem ritmada
das algas
Aromas de velas
antes do tempo ardidas
Todos os barcos encalhados
em súbitos baixios

Só eu só água
só o salto prateado de um peixe
só reflexos de mim
só a crua mudez dos oráculos

Da praia nem sinal


Há tanto tempo queria ver os golfinhos nas brincadeiras que se dizia acontecerem no estuário do grande rio. Ontem subiu para o barco e lá foi. O sol muito aberto picava-lhe a pele sardenta dos ombros. Com irreverência, tirou o chapéu da cabeça, atirou-o ao rio e deixou que o vento lhe soltasse os cabelos. Sentia-se tão bem. Rodeada de azul e verde e oiro. Foi até ao varandim da proa. Quase sem barco. A sós com as águas cheias de algas, de peixes, de medusas. Pirata nas Caraíbas. Num barco para Ítaca. Podia ter sido tanta gente. Podia ter estado em tanto lado. Mas era só uma mulher devassando as águas com o olhar salgado, na esperança de ver uma dança de golfinhos. Com um pouco mais de imaginação, até seria capaz de avistar uma sereia. Foi aquele sol a pique. Hoje acordou com febre. No sono agitado, sentiu que alguém lhe beijava as mãos. Regressará ao rio. Desta vez os golfinhos não faltarão ao encontro. Ah... e não voltará a dar o chapéu às águas.


Licínia Quitério

27.3.07

MEDOS



Um tempo houve em que as paredes não existiam.
Só as árvores nomeávamos.
Penso paredes e sinto-me cansada.
Escrevo árvores como se as tivesse inventado.
Pinto árvores nas paredes para as poder saltar.

De súbito, do outro lado,
um chicote de gritos:
Devoraram as árvores!!

Tenho pena.
Já não ouso escrever palavras
como estrelas, ou montanhas, ou liberdade,
nem pintar árvores para depois trepar.
Pode sempre haver, no avesso das paredes,
quem se divirta a devorá-las,
talvez porque afinal eu as tivesse inventado...

Assim, a partir de hoje,
apenas pensarei, sensatamente,
paredes,
altivas como montanhas a namorar estrelas,
macias e frementes como jovens árvores,
leves e saudáveis como o sabor da liberdade.

Até deixar de me cansar.

In "Da Memória dos Sentidos"


O meu Pai dizia: O medo não existe. E eu avançava pelo quarto escuro, devagar,os olhos muito abertos, a afastar as sombras dos ramos da nogueira. Mãos de lobo a tentarem agarrar os meus brinquedos. O medo não existe. E eu dava mais um passo,já muito perto da boneca que me chamava (eu ouvia) no tampo da mesinha à cabeceira. Finalmente tocava-a e de pronto a agarrava. Retrocedia, com passos estugados, em direcção à luz por momentos roubada. O coração batia e uma alegria nova me invadia. O meu Pai sabia tudo. O medo não existe.

Ainda hoje não tenho relutância em entrar no quarto escuro onde não há boneca nem sombras da nogueira. Apenas eu com o medo futuro.

Licínia Quitério

20.3.07

FLORESTAS


Que guardam as florestas pela noite?
Duendes, adivinhos, virgens loucas.
Repousos animais, leves respirações.
Olhares que só no escuro
se perdem da cegueira.
Molezas e frescuras vegetais.
Trabalhos lentos, exactos,
de operários incansáveis.
Cumprida a noite, as florestas
preparam as vestes matinais.

Com os cuidados de mulheres antigas,
com véus de névoa encobrem a nudez.
E, quando o novo dia as visitar,
estarão serenas, hirtas,
cobertas dos seus verdes radicais.
Duendes, adivinhos, virgens loucas
são agora invisíveis, impalpáveis.
Tornam-se seivas, agulhas, frutos altos.
Obedecem ao vento. São reais.


Um ar frio e húmido fazia-nos sentir os ossos. Passámos rente à floresta. Só rente, que para lá entrar faltou coragem. Uma luz tímida roçava as copas. Daí a pouco diríamos: Chegou o sol. Um bater de asas ergueu um grande pássaro. Vimo-lo poisar, por entre o nevoeiro, no que seria um ramo ou uma diagonal do quadro. Depois de nos aproximarmos, chamámos-lhe corvo. Negro a diluir-se na tinta acinzentada da manhã. Lá ficou. Parecia imóvel. Em mim se deu um estremecimento. Vi nele a sombra de um companheiro de outras viagens. Miragem de outras florestas que não de enganos. Foi decerto aquele ar frio da madrugada. A afastar lembranças, disse: Com um café quente isto passa.

Licínia Quitério

14.3.07

CORES


O homem bebe o céu azul.
Na terra negra afunda sombras
e
aguarda a alvura dos lírios.


Disseram-me que o arco-íris se pintava de sete-cores. Sempre pela mesma ordem: vermelho, alaranjado, amarelo, verde, azul, anil e violeta. Também lhe chamam o arco-da-velha. Noutras falas, é o arco-no-céu, o arco-da-chuva, o arco-relâmpago e mais não sei. Sempre lhe chamei o arco-das-cores. Quando o sol se mostra por detrás da cortina da chuva, corro a espreitar o céu. E ainda hoje, quando o arco se mostra, o deslumbre me fica no sorriso dos olhos. Antes que a magia desapareça, cerro as pálpebras com força, a restaurar a minha reserva de cores. Até voltar a encontrá-lo, vou pintando o mundo a meu jeito. Do negro não quero saber. Teimo em louvar o branco.


Licínia Quitério



8.3.07

BALOIÇOS



Entrançar luz e sombra
com as mãos do entardecer
nas cordas desfiadas do baloiço

Alindar as madeiras

com a leveza das brumas
e a húmida firmeza dos abraços


Dizer valeu a pena

nas línguas dos países

desenhados nos atlas da memória


Escrever tranquilidade

com a caligrafia

dos segredos das caixas de cartão


Baloiçar baloiçar

vai embora papão
sentir a grande voz e ali ficar


Baloiços ou balanços? Palavras em que nos sentamos à procura do ritmo inicial. Meninas em baloiços deram quadros célebres. Mais do que meninos. Transgressões consentidas a quem era exigido recato e contenção. Um baloiço em ruínas pendurado entre árvores é uma imagem muito forte que não quis aqui reproduzir. Preferível adivinhá-lo lá ao fundo, perto do portão que forçosamente haverá. Vou empenhar-me em consertar este baloiço. Se calhar precisarei de muito, muito tempo. Mas cumpre-me cuidar do sítio onde me irei sentar e balançar, balançar, quando chegar o momento de saber o fim da história. Não se preocupem. Sinto-me bem. Já deviam saber que sou dada a desvarios. Tão-badalão, cabeça-de-cão...

Licínia Quitério

2.3.07

ESPELHOS


Persigo há muito a senda dos espelhos.
A intrigante e abismal distância
onde tudo descansa. Reinos virtuais
de nevoeiros e acordes improváveis.

Os espelhos não dormem. São atentos
ao nascimento e à morte de imortais.
Intacta guardam a memória dos que
na sua transparência se colaram.

Quem dera ao entardecer os penetrasse
o frio diamante do meu peito

e os incontáveis braços das ausências,
comovidos, rendidos,
me pegassem.


Vaidosa. Não podia passar por um espelho sem nele se mirar. Não, não compunha o cabelo, não retocava a pintura. Nada desses gestos vulgares de fêmea em sedução. Olhava-se e começava a falar baixinho. Afastava-se e acenava leve, levemente. Depois, aproximava-se mais, mais. Até tocar a superfície fria, com as mãos, com a ponta do nariz. A tentar sobrepor-se à imagem. No espelho começava a opacidade de um círculo que lhe saía da boca e lhe tomava conta de parte do rosto. Nas palmas das mãos, a lâmina polida amornava. Um toque suave de um encontro esperado. Olhos bem abertos, quase dentro dos outros, dos iguais, do outro lado. Onde?
Ele um dia perguntou-lhe: Que procuras? Apanhada de surpresa, afastou-se, compôs a figura e disse: Nada. Jura que ouviu a outra, também a afastar-se, dizer: Tudo.
Vaidosa?

Licínia Quitério

24.2.07

DOZE ANOS


Eu tinha doze anos e
um corpo inconsciente

a brincar com o vento.

Da chuva só sabia que lavava

o sal das minhas mãos.

A verdura dos olhos
escondia segredos

na arcada do céu,
na fundura do mar.

Esperava pelo peixe
com asas de dragão
que me levasse
às ilhas perfumadas
dos meus sonhos de verão.

Aos doze anos
a areia era oiro em pó,

mas não tinha
valor
porque o maior tesoiro
estava na cabeleira loira do rapaz

a cavalgar a nuvem

e a soltar melodias
que havia de trocar
pelo pranto dos rios.

Com doze anos
eu tinha um coração igual ao meu.


Não, tu nunca tiveste doze anos. Os meus ficaram para sempre agarrados a um grão de areia que se entranhou no joelho direito e de lá se recusou a sair. Foi quando caí da bicicleta que o meu amigo me emprestou. Disse "sem mãos" e não reparei no pedregulho no meio da vereda. Chorei muito quando vi o sangue a escorrer e a empapar os "soquettes" brancos. Nesse tempo os curativos faziam-se na farmácia. Doíam tanto. Mas sabes que me sentia importante por ter uma ferida daquele tamanho? Como os heróis do Cavaleiro Andante, eu iria ficar com uma cicatriz. Eu sei que era literatura para rapazes, mas era da que eu gostava. Tu não. Nunca tiveste doze anos. Eu dançava, em redor da ameixeeira que meu pai plantara. E depois trincava as ameixas e deixava o sumo, mais escuro que o sangue do joelho, escorrer pelo pescoço, pela blusa. Dava-me arrepios. E o que eu gostava de me deitar de costas no chão da rua a olhar o céu. Dali viria o meu amor loiro. O pior era quando a minha mãe chegava primeiro.
Tive doze anos.
Tu não. Guardaste algum grão de areia no teu corpo? Então, já vês...

Licínia Quitério

Dedicatória: Para uma Menina que foto-escreve conversando com o seu grãozinho de areia.
L.Q.

18.2.07

RECANTOS



Tudo me pede a escrita,

a fala, o canto -

A chuva, o luar, a seca,
o frio dos homens.
O alvoroço de longas mesas
de banquetes
ou o silêncio inquieto
das esperas.
A idade dos céus
ou o princípio das feridas.
Os abismos e as clareiras
na espiral dos dias.
Os sinais, os enigmas,
os mistérios dos caminhos.
O granito e o cristal,
o carvão e o oiro,
ou o sabor dulcíssimo
de um eco.

Tudo me pede a letra,
a voz, a música
e o gesto.

Pobre, tão pobre sou
que dou o que me invento
e sempre fica um resto
num recanto do tempo.


De mãos dadas é uma expressão de maravilha. Mãos oferecidas, recebidas, presas por vontade. Asim se passeavam as duas mãos, a dele e a dela, um cofre de afectos, de certezas. Os corpos ao compasso das mãos, seguindo os caminhos por elas traçados, sem que os donos de tal se apercebessem. Detiveram-se por momentos diante da moldura tomada por trepadeiras de campainhas em estridências de azul. Uma luz branca, teimosa, a devassar espaços onde as cores amorteciam, os contornos se esbatiam. As mãos deram-se com veemência. Quiseram segurar o presente, para que os seus donos mais fundo sentissem a verdade daquele recanto de um tempo ido.

Licínia Quitério

12.2.07

O GOSTO


Gosto de me sentar em banquinhos de pau,
com cheiro adocicado de fumeiros.
Gosto do choro do salgueiro
batido pelo vento.
Gosto dos cães que não nos obedecem
que para tal nos bastam os seus donos.
Gosto de rebuçados de cinema
e de os desembrulhar na escuridão.
Gosto de olhar as montras
porque tudo o que mostram já me sobra.
Gosto da rouquidão da voz do adolescente,
a anunciar o eclodir do macho.
Gosto do Che mitificado no seu esquife,
como um Cristo de novo assassinado.
Gosto de receber saudades por herança.
Gosto do gosto da hortelã
antes de a ter na boca.
Gosto das pernas da Marlene a preto e branco,
em contraponto aos gritos do Tarzan.
Gosto do azul do céu, do azul do mar ,
mesmo sem mar nem céu;
azul, só de sonhar.

Gosto de tantas coisas, meu Amor,
mas do que eu gosto mesmo é de gostar.

Licínia Quitério, "Da Memória dos Sentidos"

Dizia amiúde coisas estranhas. Fora do contexto das conversas em que a julgavam presente. Faziam-lhe perguntas incómodas: Sabes que o Fulano deixou a mulher? Não, não sabia. Nem sabia sequer quem era Fulano. Porque esperavam que tivesse algo para dizer, arriscou: Como ficaram os olhos dela? As mãos dele agora estão vazias? Gostaria de saber. Mas ninguém tinha as respostas. Continuaram: Parece que arranjou outra. Exclamou: Oxalá gostem do mesmo mar. É tão importante para viajarem num barco de dois lugares. Dizia coisas francamente esquisitas.
Também os gostos dela eram bizarros. Chapéus com fitas coloridas, terras vermelhas, jogos de palavras, casa velhas. E já ninguém a podia ouvir afirmar, em ladainha: Gosto tanto! Nem valia a pena perguntar-lhe: De quê? Era sempre o mesmo. Subia ligeiramente os ombros, apertava as mãos e sorria com os olhos húmidos. Alguém um dia comentou: Parece que saíu dum quadro de Renoir. Ela não deve ter ouvido, senão teria sussurrado, com aquela voz sedosa e distante: Gooosto.


Licínia Quitério

6.2.07

MANHÃS


Sim também pertenço
a esta claridade matinal
suaves cortinados

frescas névoas

macia a cal
na fímbria dos telhados
restos de noite
a deslizar nas ruas
mornas as vozes

esperança de sol
na humidade das ervas
vagas promessas
de árvores futuras

Manhã
se te pertenço
traz-me o dia

farei dele o meu rosto

o meu vestido branco

a flor do meu papel de fantasia


Ela sabia o que a fez despertar tão cedo. Lembrava-se de ter visto o retrato a sair da moldura e a deitar-se a seu lado. Quisera tocar-lhe, mas os braços ficaram pesados, inertes. Foi bom o latido do cão no quintal das traseiras. Acordou sem ter tempo de dizer o porquê de todas as manhãs. Ouviu a voz de um dono a ralhar e a fala do cão a abrandar, a calar. Levantou-se, abriu a janela e ofereceu-se à luz indecisa da manhã. O corpo inseguro como um canavial a emergir da bruma. A ponte ainda lá estava. A que atravessaria até à outra margem do dia. Talvez por essa certeza, cantarolou baixinho: manhã tão bonita, manhã...

Licínia Quitério


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