Sim também pertenço
a esta claridade matinal
suaves cortinados
frescas névoas
macia a cal na fímbria dos telhados
restos de noite a deslizar nas ruas
mornas as vozes
esperança de sol na humidade das ervas
vagas promessas de árvores futuras
Manhã se te pertenço
traz-me o dia
farei dele o meu rosto
o meu vestido branco
a flor do meu papel de fantasia
Ela sabia o que a fez despertar tão cedo. Lembrava-se de ter visto o retrato a sair da moldura e a deitar-se a seu lado. Quisera tocar-lhe, mas os braços ficaram pesados, inertes. Foi bom o latido do cão no quintal das traseiras. Acordou sem ter tempo de dizer o porquê de todas as manhãs. Ouviu a voz de um dono a ralhar e a fala do cão a abrandar, a calar. Levantou-se, abriu a janela e ofereceu-se à luz indecisa da manhã. O corpo inseguro como um canavial a emergir da bruma. A ponte ainda lá estava. A que atravessaria até à outra margem do dia. Talvez por essa certeza, cantarolou baixinho: manhã tão bonita, manhã...
Licínia Quitério
24 comentários:
Também gosto muito das manhãs. Gosto de acordar bem cedo e sentir-me beijada pelos primeiros raios de sol.
Mais um bonito conjunto: Poema, texto, imagem.
Beijinhos
... tarde da noite, procurando não a despertar, levantava-se, vestia a camisa branca, apertava o nó da gravata azul, ajeitava o casaco cinza nos ombros e regressava à moldura que não queria ser apanhado pelos primeiros alvores de um novo dia. A moldura funcionava como uma janela na parede ao lado da cama e era dali que ele velava o resto do sono dela. Depois dela se levantar, as coisas já não se passavam assim, pois não era permitido a um mero retrato passear-se à luz do dia no quarto, certificar-se que a ponte estava no mesmo lugar e dizer-lhe «querida: e se hoje não fôssemos trabalhar? não é uma boa ideia fazer de conta que não conhecemos de parte alguma a dona rotina?» ela desarmá-lo-ia com um sorriso e acabavam por ficar na cama mais dez minutos. Uma imensidão de tempo no tempo contado das suas apertadas vidas.
Mas isso foi antes; agora confinado a um caixilho com relevos prateados e por detrás de um vidro anti-reflexo, apenas ouvia a voz vinda do duche «manhã, tão bonita manhã... » e o motor do autocarro de carreira a passar junto ao prédio, sobrepunha-se à voz cantada. E o carro passava e voltava a ouvir «... nas cordas do meu violão... » e...
A ponte, isso que precisamos fazer entre nós e o son(h)o. Sempre mulher e branda. Bjinho
Quando nas ressequidas paredes visito as antigas gerações a sensação que irão saltar de lá é enorme. E nesses momentos sou novamente criança de berço, menino de sapatinho na chaminé, criança de escola, adolescente quase homem, pai, velho só no banco do jardim. E aí eu vejo na ressequida parede um espaço em branco: A moldura para onde vou saltar.....
Até breve
SE DEUS QUISER
As manhãs, o começo de cada dia sonhado.
Que doçura de manhã temperada de nostalgia! Tão entranhadamente feminino, nesse estender de mãos para o dia que a manhã inicia... **
Manhã, tão formosa manhã..
Poema, tão formoso poema.
Nunca me decepcionas
bjs
nasceu uma nova canção...
O poema traz a aragem a prosa o quebranto de uma asa e entre um e outro o sol doira promessas de Primavera...
Um abraço!
que suave amanhecer...
que nunca o milagre se apague nessa moldura que guardas...
gostei muito.
"Manhã tão bonita manhã
Na vida uma nova canção"!
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"Manhã de Carnaval"!
É essa?
Demorei a voltar aqui mas não esqueci o caminho.
beijos Licínia
Manhã, tão bonita manhã...
Numa toada suave, harmonicamente perfeita.
E porque não fazer o contrário?
Para dentro da moldura, com imensa fantasia, recordar.
Entendo.
Grande beijinho
Encantada.
Ao amanhecer...um dos momentos mais belos da horas.
Beijinho Amiga*
olá licínia,
... parece uma oração ?
Ou duas :)
beijos
...E que a manhã, porque lhe pertences, te traga o dia!
Parabéns minha Amiga, parabéns!
Muito Belo!!!
Há aqui poemas de que gosto muitíssimo, tanto pela inspiração, como pela forma.
Um beijo enorme da
Maria Mamede
às vezes, através da tua poesia ou prosa, despertas-me vontade de falar. hoje não. ou sim, mas só para dentro.
um beijo.
"...Manhã se te pertenço
traz-me o dia..."
Há uma certa sensualidade neste despertar...de mistérios por desvendar, por quereres que se estendem... para lá da manhã.
Uma forma tão poética de "cantar" a manhã...
Beijo ;)
A delicadeza das palavras e imagens a transparecerem a habitual qualidade e sensibilidade de quem as escreve.
Bjs
TD
...dum dia feliz
que chegou
o sol no céu surgiu...
Como agradecer-te o sorriso que me deste esta manhã? Porque quem se não conhece é meigo e compreende sentimentos que os de perto, não?
Um pouco do meu coração está em tuas palavras. Obrigada, minha querida!
querida licínia. tem-me feito falta lê-la e ainda bem que hoje pude vir auscultar o bater dos seus pássaros. é de tarde agora, mas a leitura faz-me acreditar na possibilidade de uma manhã eterna. é por isso que gosto tanto de vir aqui. um grande beijinho e bom fim de semana.
A Manhã sabia que hoje não se podia atrasar . Deveria aparecer deslumbrante e encantadora. Abriu a porta do seu roupeiro e retirou o seu mais valioso vestido, todo bordado a luz! Iria, de mansinho, despertar com um beijo os corações adormecidos na noite.
A Manhã sabia que hoje era o dia.
Como diria o Américo Tomás, "só tenho um adjectivo - gostei"
Já agora, e como também diriam os irmãos "Dupont et Dupont", eu até diria mais - gostei!
Aparte brincadeiras, é um texto que eu adoraria ter escrito (só porque sou invejoso à brava...)
Beijo
PS - A sério, lindo!
bom dia, licínia!
este texto é uma benção à vida que se abre e às memórias.
um abraço e o meu apreço
Uma manhã que te há-de trazer um dia perfeito.
Beijinhos
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