24.10.15

NÃO, NÃO SOU



Não, não sou de rebanhos. Sou de prados.
Desobediência é minha vocação.
Sacio a fome a ver crescer a erva.
Ouvi-la germinar é uma ambição 
que guardo ao invés da pele.
Admiro os pastores e o seu silêncio 
a convocar as flautas.
É negra a minha ovelha favorita, 
a que destoa, a que desfaz 
a moleza e a conformação.
Tresmalhada será do aperto 
da malha que a marcou.
É a mais clara das ovelhas negras.
Ama o pastor mais loiro das arábias.

Partilhamos segredos quando à noite 
saltamos os cerrados e corremos prados 
que ninguém correu antes de nós.

Licínia Quitério 

16.10.15

DOS BARCOS


Digo dos barcos que ali chegam
regressos amarrados nos porões.
Homens-velas contra as despedidas.
Homens-mastros nas pedras do cais,
com os bornais carregados de sal.
No peito dos marinheiros nasce o sopro 
que acrescenta os ventos e os leva de feição.
Homens-água que com ela se entendem ou se matam.
Dos torna-viagens sei que vão e voltam 
e sempre vão com os olhos cravados na proa, 
cavando mares, cavando, até que a popa 
se recuse ao caminho.

O sopro no peito a esmorecer, 
a âncora presa ao fundo, 
o barco parado, o homem calado,
as pedras de sal a contarem os dias da última viagem. 

Licínia Quitério

CELO


O rapaz do violoncelo, melhor, o rapaz com um violoncelo, ou antes, o violoncelo que era um rapaz. Era o braço ou o arco, a cintura ou as ancas do violoncelo onde as mãos do rapaz poisavam, que as mãos do rapaz afagavam, que as mãos do rapaz castigavam.
Na ponta do arco havia uma luz que arranhava a noite, que pintava gritos na escuridão.
Quando o rapaz era pássaro, o violoncelo trinava. Quando o rapaz era dor, o violoncelo gemia. Quando o rapaz era o rapaz, o celo era também o rapaz e o celo-rapaz e o rapaz-celo rodopiavam e o silêncio nascia. Breve silêncio, feito de um amor nascido, de um amor crescido, de um amor à beira de morrer.
Depois, houve o incêndio e a luz na ponta do arco era o perfil de um rosto em labareda. O corpo e o celo ganharam outras formas e partiram, a cavalgar gorjeios e soluços.

Assim se faz a mansidão das noites dos rapazes de lume que por vezes são arco e dão o corpo ao celo, e de quem se diz, no chão da indiferença – “Não era mais do que o rapaz do violoncelo”.

Licínia Quitério 

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