29.9.15

HAVIA UMA CASA


Havia uma casa. 
Houve o chamamento da casa. 
Da casa ou da falésia em que se reclinava a casa. 
Diferente de todas as casas. 
Antiga como as mais antigas grutas. 
Nova, muito nova, inacabada, ainda.
Desabitada, a casa. 
Linhas rectas definiam-lhe o telhado, 
as paredes, as portas, as janelas, tudo. 
Não me lembro se havia vértices, arestas. 
Era um correr de linha pura, a assinalar a casa. 
Sei da praia onde encontrei a casa, 
sei da falésia, sei do rochedo mar adentro, 
pronto a navegar, solto, sozinho. 
Sei dos estalidos das pedras sob os pés, 
do breve desequilíbrio. Ai o mar 
a espraiar-se, a rir-se, desabrido.
Como pode uma casa como aquela 
ter desaparecido? O rochedo lá vai, 
mais longe, mais pequeno. 
Da casa construída, apenas a lembrança. 
A outra, a sem arestas, sem ninguém, 
voltou a ser o ocre da falésia, 
a aspereza da falésia, 
a altivez da falésia. 
Houve uma vez, houve um dia, 
de nascer uma casa, perfeita, 
como todas as casas provisórias, 
inacabadas, desabitadas, 
que recuperam seu estado de falésia, 
quando deixamos de as olhar. 
Olhar é construir a casa, soltar o rochedo, 
dar e tirar os nomes. Não olhar é apagar. 
Foi por isso que a casa perfeita, visível, desistiu.
Licínia Quitério

26.9.15

VAMOS


Olha-me, de olhos fechados, para melhor me veres. 
Toca-me, como se eu fosse de barro e pudesse quebrar.
Fala-me, baixinho, que ainda não é dia na casa de orações.
Dá-me o teu manto que eu dou-te a minha pele.
Pega-me, que tu és pai e mãe e eu sou filho.
Leva-me para longe desta terra ingrata.
Deixa as jóias, as facas, as máquinas da fome.
Atreve-te ao grande mar de enganos.
O mundo inteiro está à nossa espera e nos receia.
Entre o ir e ficar, entre a morte e a morte, vamos.
Se formos sempre em frente, voltaremos,
porque a Terra é redonda, sabem os voadores.
Olha-me, toca-me, fala-me, leva-me
para lá das farpas, para lá do medo, ao país
que restou e onde se diz haver uma mulher
e um homem 
e um filho desejado
por nascer.

Licínia Quitério

16.9.15

UM ACENO




Bastava um aceno
e as águas se fariam berço
e à tona os acossados viveriam
até os barcos aportarem

Outro sinal 
e na praia se abririam
mil braços de mulheres 
iluminados
candeias archotes relâmpagos
contra a noite
e o pavor das feras
Homens viriam 
trajados de deuses
aqueles deuses bons 
que tocam os irados
e os vestem de ternura
E a terra a abrir-se em estrada
e as farpas agora seda
agora bálsamo
e um cântico a erguer-se
à vida prometida

Um aceno bastava
e a dor morreria
Uma pequena luz
a perfurar a treva
a rasgar o deserto 
a acender estrelas
uma a uma
e os homens a caminho
e as mulheres a caminho
em sossego as crianças
o suave silêncio
a resgatar o estalido da bomba
o silvo da serpente
o horror

Um aceno um sinal bastava 
ou talvez não

Licínia Quitério

8.9.15

SE TODAS FOSSEM PURAS


Se todas fossem puras, as águas,
as de beber, as de banhar,
se todas fossem só uma molécula e mais duas,
se fossem todas transparência, luz da noite, 
pele de menino,
e mais,
se eu as tivesse na minha janela, ao despertar,
e nelas me deitasse, a adormecer,
se todas fossem inocência e asa,
quem sabe eu me perdesse
e meus olhos cegassem
e não vissem as outras,
as águas de chorar, 
as de inundar e devastar,
as de matar aqueles que em seu colo se atrevessem,
e tarde, muito tarde percebessem
que há águas de morrer.

Licínia Quitério  

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