20.11.14

A VOZ


Foi à voz que me prendi. Traz o veludo do musgo onde apetece rolar para depois nos erguer no canto do rouxinol. Tem pausas que convidam a entrar, a encetar acordes nunca ouvidos. Liberta um impreciso aroma que procura o meu cabelo e se aconchega no travesseiro da noite. A uma voz assim dá-se colo e carícias de menino. Não é bem uma voz, é um fio de prata a ligar o visível ao invisível, o profano ao sagrado, o corpo limitado à imensidão. Não, não se trata de amor, mas de vertigem, fonte do inominado e inominável, vibração da erva antes do vento, sonoridade havida antes da morte, antes da vida.

Licínia Quitério

18.11.14

ENSOMBRAM-NOS


Ensombram-nos os caminhos sem árvores.
Pegam-nos na mão a ajudar no salto.
Dão-nos brilho e nada sabem de estrelas.
Caminham pelas bermas, sob as pontes, na orla dos precipícios.
Não nos respondem, mas é na nossa garganta que cravam as perguntas.
Circulam lentamente nos implacáveis calendários.
Hoje lava escorrente, amanhã fumarola.
Serão assombrações.
Serão mutantes, caminhantes eternos na margem da alegria.

Licínia Quitério

17.11.14

CHEGAVAS TARDE



Chegavas tarde e chamavas-me Lua e eu ficava pálida a pensar como seria a minha luz no dia em que te fosses para outro céu ou te apagasses, que ser lume também cansa, também queima.

Hoje, na minha mão uma candeia acesa a iluminar, na Lua Nova, as noites e os dias baços em que procuras a oliveira e só eu sei em que ramos te acoitas.

Licínia Quitério

11.11.14

NÃO OLHES



Não olhes o Sol no zénite. Podes cegar. Os teus olhos não suportam o desafio dos deuses. Aguarda a descida, o momento em que o teu corpo se inclinar para a relva, a tua respiração a ganhar o compasso das esferas, a tua mão a tender para a concha. Esse é o tempo do encontro. Se o teu olhar se cobrir de névoa, é o sinal de que os deuses te protegem da cegueira. É a tua hora da mais perfeita solidão. Podes até ajoelhar sobre o altar da noite. Ninguém te acordará.


Licínia Quitério 

3.11.14

CONTINUAR



Sim, vou continuar. A casa vai-se desmoronando e nós esquecemos os ofícios com que se ergue a casa. É preciso voltar ao princípio, à gruta onde tudo começou, mas desaprendemos os caminhos da planície. Achámos que o olvido era o segredo para a alegria, mas perdemos a chave do segredo. Com que vontades rasgarei a tela poluída que encobre as constelações? Com que ânimo sustentarei as novas pedras e as darei umas às outras e lhes direi vós sois a nova casa? Sei, tenho de continuar, presa aos ritmos naturais dos rios, às vozes das feras e das pombas, antes do colapso, antes de a ferrugem se apoderar dos ossos, porque depois nenhum véu há-de querer mascarar a ruína. 

Licínia Quitério  

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