30.7.14

O ESCOMBRO


As cidades bombardeadas não são a cores nem a preto e branco. 
As cidades bombardeadas são da cor do escombro. 
Não têm céu, as cidades bombardeadas. 
Acima do pó, a ausência do céu. 
A cor do caos é indecifrável, inominável.
Do escombro erguem-se corpos imponderáveis que são fumo.
Só as cordas de fogo têm cor. Só elas permitem mapear o escombro. 

Licínia Quitério

29.7.14

CONHECER



Conhecer um lugar, melhor, reconhecê-lo. Dizer baixinho estive aqui. Desconfiar dos sentidos. Tocar a pedra e não tocar. Pronunciar um nome de erva. Ouvir a fala da nascente. Antes de tudo, pedra ou erva ou água,  dizer estive. Mais do que estive, fui. Sem alegria nem tristeza, fui. Por instantes, saber da plenitude. Tanto basta para não mais voltar.

Licínia Quitério

23.7.14

ESPERA-ME


Espera-me como se eu fosse um barco carregado de névoa a dissolver horizontes.  O meu corpo é a gávea onde subiram marinheiros, buscadores de outros céus, desistentes da terra e suas glórias. Não me julgues de velas golpeadas nem de remos quebrados. Basta-me o vento ou a sua ausência. 
Repara como envelhecem as traves da vigia. Só eu não envelheço porque amarrei o tempo a uma escuna e a mandei vogar, vogar sobre o nada a que tu chamas mar. Se de esperar te cansas, abre a janela e vem, voa, caminha, abre as águas e adormece. Eu sou a névoa, eu sou o barco, ficarás comigo a dissolver horizontes. Que te importa o olhar?

Licínia Quitério  
    

15.7.14

ESMERALDAS


Gritar esmeraldas na bainha do mar acende labaredas no profundo, em cavernas pejadas de desejos, leitos brancos de morte inacabada, de ogres soluçantes,  de territórios imaculados. Um dia fui o substantivo enrolado no colo das gaivotas. Hoje esqueci a substância do azul. Por isso lanço gritos na bainha do mar e aprazo encontros febris na maré viva, na noite da lua grande. Convocarei feitiços, sacrifícios, abençoarei a demência, a insanidade. De manhã, a semente de lótus lá estará, na minha mão direita a implorar-me a terra, a água, o homem que há-de vir, semeador sem sonhos nem memória. Acreditar será o meu martírio.

Licínia Quitério   

7.7.14

SINTO FRIO


Sinto frio e estranho-me. Vejo o sol, mas tenho frio. Um frio que me ficou de há muito, de um tempo finito de encostas soalheiras, de campainhas azuis, de morangos maduros. É um frio opaco, de despedidas e desistências, de cumes gelados, de abraços esquecidos no avesso da memória. Um frio de animais abandonados nas bermas, e quem diz animais diz irmãos, amigos, expostos à devora, à avidez da nova selva que não tem fim, não tem fim.

Licínia Quitério

4.7.14

A OLIVEIRA

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Tu, que nasceste depois da oliveira, e os teus irmãos depois das irmãs dela, ao pé dela viveste, dela fugiste e a ela voltas e a olhas agora como se de árvore fosses mãe e, serena, a cuidas para que não desista, não se negue ao inverno e entregue os frutos. As folhas tombam sobre ti, em teu redor, e as vais somando como dias, e o total da soma nunca saberás. Por cada ramo novo, uma lembrança de outros ramos que quebraram, arderam, só por dentro, para não amedrontar os animais. Porque conheces a compulsão das seivas, tronco abaixo, tronco acima, em ti não se abre o espanto pelo rumor de vozes muito antigas que dizes, a quem te perguntar, ser o roçar de rendas no soalho. Ninguém pode saber os termos do contrato que com ela firmaste, sendo tu menina e nua e a oliveira o teu palácio de ventura.

Licínia Quitério 

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