25.9.13

A CONSTRUÇÃO



Incansáveis, constroem caminhos. Enredam, alinham, desalinham, enredam. Novos caminhos atam e desatam, ao longo dos primeiros, e outros, a atravessá-los, outros mais, até à malha inextricável, ao campo inexpugnável. Do alto do seu navio de glóriadeclaram-se senhores do labirinto. Dentro dele viverão a paz dos cercos. O nascimento das rosas será o sinal da saída do campo que já foi aberto, navegável, antes do segredo da construção, antes do afã dos construtores.

Licínia Quitério

20.9.13

OS FIOS



Foram os fios que se enredaram na casa onde nasceu a avidez. A mesma casa, diz-se, onde os frutos secaram e as sementes voltaram, elas também tão secas que apagaram a memória das primeiras chuvas. Hoje fala-se de um lugar de fios prodigiosos que tilintam e reluzem pela casa, na hora de saber o que permaneceu, o que fugiu, o que se desfez, o que não viveu, no tempo da avidez. Os fios, tecelãos das próprias malhas, linho e estopa, amor e cupidez, véu de noiva e sudário, teia da solidão sobre a cidade. Com o incêndio dos fios há-de vir a nudez. Resgate e recomeço, corpo aberto. Ao longe, a encosta e o declínio.


Licínia Quitério

14.9.13

A ESTRADA


Na estrada longa, o nosso carro de sol e chuva vai pegando passageiros, largando outros, numa viagem de conhecer, desconhecer. As sinuosidades encobrem as velhas margens e quem nelas caminhou ou se perdeu. Vão-se apagando as marcas do rodado. Indelével, a memória dos vivos e dos mortos, a impedir o esquecimento. A luz que indicia o fim da estrada revela os nomes de passageiros que continuam no carro, invisíveis, intocáveis, silenciosos, testemunhas da inacabada solidão.


Licínia Quitério

8.9.13

NAVEGAMOS



Acendemos barcos nos telhados para não sossobrar na penumbra dos claustros. Encobrimos fissuras com os fios sobrantes do naufrágio. Percebemos que a luminescência do silêncio pode guardar o segredo da viagem. Tempo sobre tempo restauramos a nau. Aprendemos a bolina mas não nos precavemos contra o capricho dos mandadores dos ventos. Confiamos e vamos e tantas vezes 
voltamos. Outras tantas perdemos a vela e o encanto. Empobrecemos, enriquecemos, vendemos o pano e as vísceras. Em terra somos a hesitação entre a procela e a bonança. Imóveis, navegamos, os barcos acesos vigiando o mar.


Licínia Quitério

2.9.13

RÉPTEIS


Têm a fala sibilina dos répteis, o andar rasante dos répteis, os lábios ausentes dos répteis, a ligeireza na fuga, o silêncio antes da presa, a transfuga da pele, o transvase da linfa, o desdem pela recta,  o êxtase dos tiranos, a ambição dos tolos. Quem lhes dera uma fita azul que atasse o corpo ao céu e ensinasse negócios de subida, de brancura, de travessia sem barqueiro e sem óbolo.  Quem nos dera a água que lavasse, a pedra que pesasse, o sopro que os mudasse e fossem peixe que nadasse ou ave que voasse ou réptil que de homem não soubesse.

Licínia Quitério

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