26.12.11

CLARISSE E OS ÁLBUNS




17. Foram os anos insidiosos nas páginas do álbum de lombada doirada. Entraram, um a um, pelas pequeninas frestas entre as folhas, e ajustaram contas com as cores. Como um vento desatinado que tivesse mudado as coisas, os lugares, as gentes, dando-lhes outros poisos, outros tons, outros tempos. Uma peça de teatro com um encenador enlouquecido que da tragédia fez comédia e deu grandeza ao vilão e sonho ao imbecil. É por isso que Clarisse não consegue lembrar-se em que céu aconteceu o voo triunfante do pássaro branco de peito negro. Talvez no céu azul da terra quente em que se deitava de costas no pino do verão.   Afundava os pés na areia de oiro, as pernas dobradas pelo joelho, e cavava pequenas crateras circulares, 
com as mãos espalmadas, até que o chão as cobrisse até aos pulsos. Clarisse gostava de se pensar planta a enraizar terra dentro, firme, muito firme, tranquila na imobilidade vegetal que desejava. Poderia bem ser a terra das casas baixinhas e azuis, agora mais azuis, esquecidas da brancura dos dias felizes. Encurvados os telhados, encurvados os dias de Clarisse, intacta apenas a curva do olhar. No ano que chegar, Clarisse há-de com ele encetar desafios na busca de retratos que o vento não tenha violado. Assim permaneça na beira do tanque, à tardinha, a rola de peito róseo a que falta uma asa.


Licínia Quitério

19.12.11

CLARISSE E OS ÁLBUNS




16. Não pode Clarisse suspender o balanço dos dias. Imóvel só o pêndulo sobre os retratos dos álbuns. Há um tempo de regresso, feito de memórias breves, pequenos grãos de saudade, pétalas amargas de flores suicidadas, lágrimas puras dos dias azuis. Nos arcos dos templos visitados, os olhos dos seus olhos ainda atentos às rolas de asas quebradas. Clarisse não reconhece os lugares, mas sabe que a esperam no dobrar de uma folha amarelada, num serão de contos a amaciar o inverno. Recorda como diziam havemos de lá ir como se tivessem já ido e voltado. Tamanho era o lago do presente que era também futuro e tudo nele se bebia. Clarisse afaga com os olhos verdes as colunas verdes e sorri à varanda das viagens do grande tempo de sorrir. Não tem pressa. Uma noite virá de saber o retrato da cidade inteira, das varandas de homens dormentes, das cantigas de roda, dos labirintos, dos morcegos, da vibração dos amarílis. Essa a grande certeza de Clarisse, a fechar com doçura o álbum das viagens.


Licínia Quitério
    

13.12.11

ERA UM TEMPO DE MULHERES




Era um tempo de mulheres como estátuas, de olhos cegos, abertos, da cor das íris que nos arcos moram. Mulheres esbeltas, veladamente nuas, com  pés deslizantes como barcos à bolina. Mulheres mudas, com sorrisos desenhados pelas mãos das mães e dos homens. Mulheres que só ouviam os ecos das vozes das mães e dos homens. Era um tempo de flores que só as mulheres colhiam, de frutos que só as mulheres davam a comer. Era um tempo, digamos, todo verde. As mulheres estátuas eram também árvores verdes e as flores e os frutos delas nasciam. Não se sabiam verdes, as mulheres, nem estátuas, nem árvores. Sabiam de mães e de homens que lhes moldavam os olhos, a boca, o corpo. Amadureceram as mulheres e outras cores aprenderam. Sabem que são brancas, ou negras, e quebraram a ordenada mudez. Agora dizem filho e sabem que os seus olhos já não cegos são espelhos de flores, de novos frutos, de outras mães, de outros homens. Tudo nasce neste tempo das mulheres. 

Licínia Quitério  

6.12.11

DÊEM-ME


Dêem-me
um resto de verão uma franja de lenço um caroço de alperce um pião uma bruma da tarde uma escama de peixe um dó menor uma folha de trevo um retrato a sépia uma fresta de luz
uma razão
uma razão
para construir para defender para louvar para caminhar para refazer para atacar
para voltar
para voltar
ao ninho à árvore à estrada ao mar à música ao grito
ao riso
ao riso
na prata das sereias na rouquidão dos machos no veneno das bruxas na natural infância na vibração
do amor
do amor

Dêem-me
quero dizer
a sede

a água
a água
o desejo


Licínia Quitério


1.12.11

GRAÇA


com a graça da tarde desmaiada
poisas nas varandas da cidade
a álacre nudez das borboletas

em vez de dizeres rio dizes mar
em vez de mar falas de mundo
em vez de amor soletras vida

trazes contigo o odor das  rosas
de janeiro e do pão fermentado
nos alvores da liberdade

terá outra varanda o amanhã
para poisares a verde madureza
o doce sobressalto e o cansaço
das pedras com que dizes tempo

Licínia Quitério

Nota 1: Foto trabalhada a partir de um original de M.
Nota 2: Publicação (foto e texto) dedicados à M. e à B. 

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