7.5.07

ANOITECER


Por vezes não é mais do que uma sombra
No soalho à frente do teu passo
Por vezes dizes – vai-te
E arredas a cortina

Por vezes tem contornos de animal
Cansado e ferido
Não sabes se avançar ou recuar
Não sabes se gritar ou emudecer

Não te ensinou o berço o anoitecer


Levantava-se cedo. Quase sempre. E cantarolava enquanto abria as portadas e arredava as cortinas. Brincava com o gato ainda de olhos piscos, ajeitava as flores nas jarras, fazia um café que aspirava com delícia e rodeava a chávena com a concha das mãos. Seria sempre assim.
Lia quando tropeçou na frase "caiu a noite". Um ligeiro aperto no peito, uma sombra no chão da sala, a quietude do gato. Correu para o espelho e ele devolveu-lhe o rosto enrugado, baço.
Como podia não ter dado por tantas rotações e translações? Foi esse o instante em que percebeu que anoitecer não é um verbo. É uma oração.


Licínia Quitério

20 comentários:

Alberto Oliveira disse...

... depois voltou ao livro e era de manhã. Uma gloriosa manhã de meados de Maio, morna e com uma ínfima brisa vinda do mar convidativo que lhe soprava ao ouvido "Vai. Dá uma corrida, fecha os olhos e mergulha. Garanto-te que rejuvenesces." Olhou de soslaio para o gato e jurou que ele lhe piscou um olho...




beijinhos.

un dress disse...

anoitece em mim este dia.
mais: esta vida.

frente a frente o espelho: sou eu.

irreconheço -me:
a lentidão.
a palidez.
o desgaste.
a melancolia.

há tão pouco tempo alguém me embalava
ou
eu embalava alguém...?

agora: sou eu e o gato a taça do café...

frente a frente.

Vi.á.Veis.



beijO.licínia

Manuel Veiga disse...

ha anoiteceres assim belos. cuja luminosidade atravessa incólume todos os espelhos...

adorei.

vieira calado disse...

Gostei do seu poema.

agua_quente disse...

Nem sempre é fácil aprender o anoitecer. Dizê-lo assim, então...
Beijos

JPD disse...

Excelente qietude!
Bjs

cuotidiano disse...

É um completo absurdo eu ter pretensões de dizer que escreves maravilhosamente bem. Por isso, limito-me a dizer que, mais uma e outra vez, ma fazes sentir (bem).

E, só e apenas por um "isso" disfarçado de obrigado,um

Beijo

M. disse...

Fabuloso, Licínia! Dos mais bonitos poemas que encontrei aqui! E as reflexões em azul, um complemento.

Vasco Pontes disse...

olá irmã,
talvez já tenhas feito melhor, mas duvido que mais sentido.
sentar-nos-emos por aí, um dias destes,a falar de como ficar velho sem perder a mocidade.
hehe..

Anónimo disse...

aqui nunca anoitece. o sítio do poema é límpido e puro. as manhãs crescem nele até às imensas tardes solarengas que se deitam sobre as pradarias. nenhuma sombra se abate aqui perto. é sempre primavera em flor. um grande beijinho.

APC disse...

Sabes que eu pegava nesse teu poema, guardava-o no colo ("- Que trazeis em teu regaço? - São verdades, Senhor") e entregava-o ao domicílio?
... Porque a poesia plena é universal!
É a sombra da verdades e a verdade das sombras... E quase sempre doi!

Poderosíssimo final!

Um grande abraço! :-)

Rui disse...

Benzeu-se e adormeceu. Ou teria tudo sido apenas um sonho?

Amaral disse...

O negro escurecer da noite, o grito do amanhã no berço nascido...
Sem nos apercebermos, a roda vai girando e na quietude do instante sentimos o reflexo que é a ilusão do que somos....

António Melenas disse...

Pois não, anoitecer não é só um verbo. Tem vezes que é uma iquietação.
Mais dois belíssimo textos que se complementa,
Beijinhos

Maria Carvalhosa disse...

A inevitabilidade da noite que cai...
dói quando o sol se põe, tememos que não volte, mas a magia de uma noite de luar ou de uma abóbada celeste pintada de azul-escuro com biliões de luzinhas a piscar é compensação que baste.

Mais uma excelente metáfora, amiga!
(Ambas sabemos que o entardecer da vida também traz consigo a esperança de uma serena noite de lua-cheia.)

Beijos.

Paula Raposo disse...

Fiquei sem palavras ao ler-te. Anoitecer é mesmo uma oração que nos marca a Vida. Beijos.

esse disse...

Pousou o rosto nas mãos e fechou os olhos. Toda a sua vida começou a andar para trás, tal como um filme.E parou naquele momento em que sentira, pela primeira vez, o seu perfume...e ficou assim, a senti-lo, talvez um minuto, talvez uma hora, talvez uma eternidade...
Depois, olhou de novo o espelho...tinha os mesmo rosto, mas, nos seus olhos, brilhava um sorriso de menina.

Era uma vez um Girassol disse...

Que o anoitecer deixe antever o brilho do luar, que as marcas do tempo sejam belos desenhos de vida vividos, que o coração se encha de orações pelas bençãos recebidas.
Adorei o poema e o texto!
Beijinhos

Cusco disse...

Como sempre o mesmo padrão: Alta qualidade em duplicado.

Até breve!

Teresa David disse...

Mais um belo texto e poema complementado por uma magnifica fotografia. Quando aqui venho tenho sempre de me repetir, mas a qualidade é constante!
Bjs
TD

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