Foto de L.Q.
Deram-te um nome.
Um homem tem de ter um nome:
João ou Pedro ou Manuel.
À pedra damos nome de pedra
que o é antes da pedra
e a si se basta.
Às flores chamamos flores,
o nome próprio que lhes dá a cor.
Um homem tem de ter um nome:
José ou Mário ou António,
para caminhar dentro dele.
Quando pegas na pedra,
pensas o nome pedra
e ele te diz da sua substância.
Quando cheiras a flor,
pensas o nome flor
e é ele que te inunda.
Quando olhas um homem,
Afonso ou Jorge ou Joaquim,
vês o seu nome,
a sua marca de água,
o oceano onde navegará
até ao fim do medo.
Licínia Quitério, "De Pé sobre o Silêncio"
"Quando o padre perguntou o nome que iriam dar ao neófito, o padrinho respondeu, sem pestanejar, um suor incómodo aflorando as palmas das mãos:
- Jesus.
- Jesus?
- Sim, Senhor Prior.
- Assim, sem mais nada?
- Jesus Veredas Bicho, de seu nome completo.
O padre resmungou, a ensaiar o fio de voz:
- Jesus Bicho. Não! Parece heresia. Deus nos defenda.
- Mas, Senhor Prior, o pai é Bicho, o avô assim era, quem sabe se o avô do avô, não se deve negar o nome que o sangue traz.
- Pois, pois. Ainda se fosse Francisco, como o de Assis, irmão de todos os bichos… Sim, isso fazia sentido. Mas porquê Jesus?
- Saiba o Senhor Prior que, nas dores com que o pariu, a mãe outro nome não gritou. Dizem as mulheres que à roda estavam que, assim encolhidito como é, custou tanto a nascer como se encorpado menino a este mundo chegasse. A minha comadre Maria Bicho, coitadita, naquelas agonias que cabem a quem faz o maior dos trabalhos do mundo, só chamava pelo nome do Salvador.
- E daí? Interrompeu abrupto o prior. - Todas as mulheres gritam quando têm essa tarefa entre mãos. Fez um sub-riso ao emendar: - Entre pernas. E persignou-se. - Que o Senhor me perdoe a ousadia.
O padrinho sentia-se levemente agastado. Pigarreou, entrelaçou as mãos atrás das costas, à procura da firmeza que o ajudasse a cortar cerce o rol de considerações, e disse, peremptório:
- Ao padrinho cabe nomear o afilhado. E este, Senhor Prior, será de sua graça Jesus, que pela boca da mãe falou na hora de viver, Veredas como as que a família da mãe vem percorrendo e Bicho, como todos os Bichos que houve pelo lado do pai.
Foi brilhante e definitivo. Alguns dias depois, o recém-chegado ficou inscrito no rebanho com o nome do Pastor."
Licínia Quitério (excerto de um conto)
18 comentários:
Passei para deixar um beijo e votos de uma boa semana.
Continua a tocar-me com a sua escrita. Adoro Ler o que escreve.
Ler-te é sempre, ao mesmo tempo, um prazer e um desafio tanto ao intelecto como aos sentidos. Muito bom, todo o conjunto.
Beijos
Dos nomes, nada sei, nem do meu.
Uma boa semana vizinha:)
“Cabeça mole!” - diziam à sua passagem. Ele sorria, riso infantil, que não percebera ainda a maldade do mundo. Sua expressão de lagoa calma, águas profundas - nunca se assemelhara espelho.
“Juízo fraco!” - diziam à sua passagem. Ele sorria e acenava feliz. As mãos em festa a desenhar asas de anjos, que só ele via.
“Qual é teu nome, cabeça mole?” – lhe perguntavam com ironia. “Amigo!” - era a resposta que ouviam, desde que ele aparecera na cidade, depois de uma chuva forte, que deixara muitos desabrigados.
“Amigo!” – e sorria feliz, enquanto desenhava asas de anjos, que só ele via. E em pouco tempo a meninada o aceitou como amigo: o amigo das asas de anjo, que ninguém via."
...
A beleza do teu texto despertou ternas lembranças. Grato, também por isso.
Dona Licínia:
Ao ler esta sua missiva, estremeci. Não se amofine antes de tempo que tal tremor nada tem a ver com as suas letras escorreitas e criativas. Eu explico.
Muito os meus progenitores se debateram para me arranjarem um nome antes de chegar à pia baptismal. E porque não pretendiam seguir fórmulas modistas da altura foram pedir conselho aos familiares mais directos. O meu avô da parte da minha mãe chamava-se João; João de Deus. O meu avô da parte do meu pai que ainda tinha escapado à censura do estado novo com a euforia do final da guerra, chamava-se Lenine. Por unanimidade familiar, o meu nome completo seria João de Deus Lenine.
Escusado será acrescentar que não fui baptizado...
Seu admirador
Legível...
O poder dos nomes!
A força das palavras!
"Um homem tem de ter um nome (...) para caminhar dentro dele."
Muito belo!
Beijinho
"dou-te o meu nome, dou-te a minha vida..."
os homens precisam ser "nomeados", sem dúvida. os deuses não: como as pedras!
magnífico texto!
Querida Licínia, volto porque me incubiram de um pequeno favor. Peço-lhe que visite o meu espaço, pois nele (na parte dos comentários do último post) encontrará um comentário para si de António Melenas que, por qualquer razão, não consegue comentar nesta sua salinha e me incumbiu deste recado.
Um beijinho
no entanto, tantas coisas poderia ser o nosso nome, ausente de nós...
licínia, acho que me agradaria muito ler o conto, do qual seleccionaste (muito bem) esse excerto).
abraço grande
Como é bom isto de dar nomes! Gostei tanto das tuas letrinhas!
Quando falamos de nomear, tenho sempre a sensação de que atribuimos características e qualidades a quem (ou ao que) nomeamos. É como se o nome se tornasse uma representação do objecto nomeado.
Não sei se isto tem alguma cvoisa a ver com as tuas belas palavras... :)**
Foi bom passar por aqui. Está decidido: volto com o próximo post.
Excelente.
Vim aqui ao acaso, em boa hora o fiz.
Voltarei cm toda a certeza.
Interessante...
Passar por aqui e ler os teus poemas e textos é sempre um grande prazer...
Terão os nomes tanto poder e significado? Pobre de mim...
O conto está o máximo!
Beijinhos
Passei para te deixar um beijinho e desejar um bom fim de semana.
Adorei tanto o poema como o excerto do conto, também por aqui encontram-se sempre palavras que valem a pena ser lidas!!
Um bom fim de semana e bjs
TD
!iema... levin ednarg ed oiràtnemoc mu ...
òptimo fim de semana.
Licínia Quitério (excerto de um conto)
Uma so pergunta :
aonde posso eu encontara o texto completo deste conto e a integralidade dos seus contos e poemas
Bien a vous
alexandres forjaz de sampaio
kontakt@teledisnet.be
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