20.8.06

DA GUERRA


Delacroix - Entrada dos Cruzados em Constantinopla

Chegam notícias da guerra.

Disseram-me que as guerras
visitam as cidades.
Tenho medo.
A minha cidade é antiga.
As ruas têm pedras soltas
em que os velhos tropeçam.
Na torre da igreja maior
faltou o azeite.
As corujas partiram.
Os jardins estão pobres
(a chuva tem sido salgada).
Mas na cidade eu habito
e nela acolho os irmãos
e os filhos deles.
Na pequena praça
há o banco verde
com uma criança ao colo.
É uma cidade triste,
mas antes de o ser
já era a minha cidade.

Chegam notícias.
Penso fechar as portas da cidade
e convocar as cores.
A cidade será
o ocre da planície,
o cinzento do céu.
Cidade sem cidade.

Dizem as notícias
que a guerra nada sabe do silêncio.


Nos teus olhos morava, desde há muito, a guerra. Talvez lá tivesse estado desde o princípio. Da guerra soubeste quase tanto como do amor. Quando ela, sem convite, se sentou à tua mesa, afastaste decididamente as formigas de asa que te disputavam a carne ressequida. Olhaste os pés e viste que te tinham calçado botas de soldado. A palavra inimigo passou a morar diante da tua porta. Pensaste em acompanhar a debandada das formigas de asa e procurar o deslumbre de uma lâmpada. Mas mandaram-te ficar. Vestiste as cores sujas dos guerreiros e defendeste o teu charco e a pele dos teus homens. Apuraste os cálculos e a pontaria. Conseguiste, disparando, dizer ao inimigo: "Não te matarei. Não me matarás.". O pacto foi selado na escuridão da noite tracejada pelo lume das balas .
Na tua guerra ninguém morria. Até ao dia em que, de ambos os lados, o pacto foi quebrado. Nada pudeste fazer. Voltaste, incólume. Mas nem o amor conseguiu tirar dos teus olhos a dor de teres visto a guerra.


Licínia Quitério

14 comentários:

Maria P. disse...

O deslumbramento das tuas palavras abafa o som da guerra. Excelente.

Um beijinho, Amiga, e boa semana.

Manuel Veiga disse...

até na guerra pode haver uma cançao!

... e uma praça pode arder como archote. numa cidade antiga.

arrepiei-me, na minha memória da guerra!

GTL disse...

a guerra é sempre má mesmo quando bela!
TG

vida de vidro disse...

E quantos guardaram (e guardam) em si, para sempre, a dor de ter visto a guerra!
Um texto emocionante. **

M. disse...

Não tenho palavras, Licínia. Comovi-me. Eu que nada sei da guerra.

JPD disse...

Troia foi destruida por Helena -- a mulher mais bonita de então -- lúbrica e volúvel ter aceitado Heitor.
Actualmente, ama-se fugazmente e guerreia-se demasiado assiduamente, já quase se aterroriza!
Bjs

Alberto Oliveira disse...

Era um pacifista convicto. Tão convicto, que odiava de tal forma a guerra, que seria bem capaz de arranjar uma guerra... para acabar com a guerra.

Desgraçadamente, o homem nunca deixará de se matar, invocando os mais singulares protestos.

Abraço.

aquilária disse...

belíssimo.
sem palavras para descodificar o arrepio que me percorreu, ao ler-te.

haverá um dia em que as cidades se vestirão de branco

um abraço (foi bom ter vindo dar aqui uma espreitadela) :)

Era uma vez um Girassol disse...

Quanto de belo e de horror!
Custa sempre, seja onde for...
Bjs

Anónimo disse...

Caramba... comovente. Não, antes turbilhão. Excelente.
Um beijinho

alice disse...

venho em paz dar-lhe um beijinho

não aguentei as saudades

espero-a bem ;)

alice

Hortência disse...

Primeiramente quero agradecer a bem humorada visitada ao meu blog. Em segundo lugar, comentar seu poema: muito bonito, faz a gente pensar em vários tipos de guerra.
Um beijo
Hortência

Diafragma disse...

Impressionante.
Verdadeiramente impressionante.

Teresa David disse...

Como sempre nos seus posts encontrei a completa sintonia entre as palavras e imagem escolhida.
Bjs
TD

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