18.10.06

DOS SEGREDOS


Brinquedos de mulheres, aconchegados,
sugerem sonolências de um avô
nos suaves desvelos de uma manta,
os risonhos quadradinhos de tricô.
Abertos e fechados, alternados,
coloridos ao gosto de quem os fabricou,
quantas vezes a ocultar o defeito
de a vida ser um quadrado imperfeito,
a preto e branco e a contra-gosto.

Só as mulheres conhecem o segredo
destas flores nascidas de um novelo
tamanho como o tempo de degredo
das esperas que cabem às mulheres.
A espera é seu sustento e desatino,
seu tormento e descanso, seu balanço
de nascenças, de chegadas, de partidas,
de presenças, de partilhas adiadas.

O homem, quando espera, é um ser dormente,
como folha ondulante à tona de água.
A mulher agarra os fios e os vai tecendo,
as flores criando, acrescentando,
em profusão multiplicando teias.

Mulheres serenas, de novas Grécias,
a contar os fios, esperando Ulisses,
narrador de aventuras e peripécias e tolices.
Velhas mulheres tisnadas de Macondo
que Gabriel Garcia fez tecer
mágicas mantas, infindáveis.
Mulheres bordando esperas,
em doces flores de lã, estilizadas.
Mulheres cristalizadas, sempre as mãos movendo,
esperando da vida o que não sobrou.

Mulheres, só elas sabendo
o que esconde o quadradinho de tricô.

Licínia Quitério, "Da Memória dos Sentidos"

Há quanto tempo aquele segredo habitava as suas madrugadas, os seus crepúsculos, os seus retiros agridoces? Não sabia dizer. Tentava não lhe dar importância, arrumando-o na arca das velharias sem préstimo. Mas era inevitável sentir-se espiada, devassada, sempre que ficava a sós com os ossos do passado. Num fim de dia morno de Outono precoce, o segredo revelou-se, atrevido, impúdico, depondo-lhe no coração um pássaro ferido que pedia socorro. Percebeu o anúncio. Chegara o tempo da verdade. Despiu os véus, apanhou do chão uma folha seca, caminhou em direcção ao sol poente e murmurou, com a voz limpa das memórias: Amo-te.
A ave bateu asas e partiu. No céu ficou um desenho vago de velhas rendas.

Licínia Quitério

16 comentários:

Maria P. disse...

Lindo...

Um bom dia vizinha, beijinho.

esse disse...

Olá.
Já cá tenho vindo espreitar várias vezes, mas hoje não resisto a entrar para te dar os parabéns pelo teu blogue.
E este poema, cara amiga, é de uma beleza tal que todos os momentos desejariam ser esperas...à espera do momento.

M. disse...

Um hino às mulheres.

bettips disse...

Quanta saudade, quanto/quando é poema...,mulheres-avós que recordamos sempre. Abç

Manuel Veiga disse...

bravíssimo poema. épico. bordado em linho. fiado por "mulheres de Atenas". ou por mulheres dos Andes...

firmina12 disse...

lembrei-me da minha avó e de um monte de tias solteiras

Alberto Oliveira disse...

... gostei muito da definição poética no que se refere à diferenças entre o homem e a mulher enquanto esperam...

... e com um post tão bem tecido, não vale fazer comentários irónicos.

Óptimo fim-de-semana!!

Isabel disse...

Nem te sei dizer o quanto adorei.
Vi com a memória as velhinhas do lar onde muito tempo voluntariamente ajudei contando-me histórias agarradas ao tricot.

Um beijo com saudade dessas velhinhas e com o meu obrigada pela tua história.

Isabel

Teresa David disse...

Como gosto sempre de ler o que por aqui vai sendo publicado, e como entendo o prazer dos trabalhos manuais, que sempre fiz e farei enquanto as mãos o permitirem, tão bem expressos neste post.
Bjs
TD

gato_escaldado disse...

Poema declinado no feminino, sem dúvida. Muito belo...

Beijos

JPD disse...

Bjs

Era uma vez um Girassol disse...

Quantas desejariam que assim acontecesse...
Um poema e texto comoventes de verdades escondidas em segredos.
Lindo!
Beijinho

hfm disse...

Muito belo!

aquilária disse...

retenho as palavras. as memórias sussurram, como rendas, num quase -silêncio que não devo perturbar.

abraço grande

Maria Carvalhosa disse...

Licínia,

Mais um lindo poema do teu livro, e um segundo texto que, em matéria de sentimento e qualidade literária não lhe fica atrás... apesar de estarmos perante formas diferentes de escrita e tempos distintos. Gosto desta dualidade a que nos habituaste nos teus posts. É sempre muito gratificante visitar o teu espaço!

Beijo sentido,

Pitanga Doce disse...

"Mulheres bordando esperas". Que definição tão linda! De fato os homens quando esperam não criam como nós. Talvez nem saibam esperar.
Esse poema me lembra Mulheres de Atenas (Chico Buarque)

Mirem-se no exemplo
daquelas mulheres
de Atenas
tecem por seus maridos
nobres guerreiros de Atenas

beijos de fim de tarde

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