26.3.25

SÂO ASSIM

São assim as mulheres
Calíopes, Cassandras
Pelo tempo dos tempos
Outros nomes tomando
Outros cabelos, outros rostos
Doces e amargas
Sibilas e cerejas
Caçadoras, tecedeiras
Encantadoras e encantadas
Mulheres-serpentes
Mulheres-sereias
Mulheres-mães
Mulheres-filhas
Cantoras nas alturas
Chorosas e risonhas
Perversas amantes
Viúvas eternas
Julietas, Colombinas
Asseadas Marias
Não te demores Maria
Deixa o homem Maria
São todas assim
Mulheres-gregas
Mulheres-etíopes
Mulheres da França

Mães de Tebas
Enigmas por decifrar


Licínia Quitério



17.3.25

O VELHO INVERNO

 O fim de um tempo, o princípio de outro, na roda do ano, na roda dos anos.

O Inverno prepara as despedidas, inquieto.

Nos homens, um desacerto, entre o frio e o calor, entre a tempestade e a calmaria.

Cheio de manhas, o velho Inverno.

O musgo não desiste dos muros, os braços das árvores continuam despidos, o frio açoita-nos os ossos.

Olhamos em redor e percebemos sinais de boa nova.

As primeiras flores, os pássaros novos, são anúncios da mudança.

Vamos somando Invernos, os corações disponíveis para as Primaveras.

Na roda da Vida vamos.


Licínia Quitério


14.3.25

OS POEMAS

 Os poemas vão

no seu destino de pássaros. 

Ganham alturas, ventos de feição

algumas lágrimas de nuvem

remoinhos, acalmias

novos ímpetos, arrojos

ternuras envergonhadas

sinais de lume, olhos de lince,

lonjuras, lonjuras

música, música.

Descobrem mundos

aquém e além dos astros. 

Hão-de ser tudo, nada.

Eu fico.


Licínia Quitério


11.3.25

HÁ CASAS

 Há casas que existem porque um dia dissemos: 

Olha ali uma casa.

Se voltarmos ao lugar, diremos: 

Ali houve uma casa.

Um dia diremos: 

Há casas que só existem enquanto as olharmos.

Licínia Quitério

1.3.25

GENTE


Essa gente que eu amei
teve o seu tempo de acabar a história
de fechar o livro
de encostar a porta devagarinho
de balbuciar a primeira palavra aprendida
de fazer-se fumo e depois nuvem
Essa gente que eu amei
habita agora os meus sítios
as minhas horas
os meus passos em volta
as gotas de chuva nos vidros da janela

Foi o amor dessa gente
que me deu a garra de trepar
a corda de amarrar
e continuar na senda dos dias
como se fosse rocha
ou pena ao vento
a sussurrar os nomes
dessa gente que eu amei

Licínia Quitério

20.2.25

A ESTRADA

 Tantos dias há em tantos anos.

Tantas vontades de desistir ou persistir.

Assim o tempo dos vivos.

Não esquecer os nomes dos outros 

que são resguardo, inspiração, 

por vezes inquietude, assombração, 

por vezes pedra, derrocada.

Em permanência, a estrada.


Licínia Quitério 


7.2.25

CAMINHOS

 Não me perguntem como é que aqui cheguei

Vou falando de tudo e de nada que encontrei
Do garoto que me pediu dinheiro para tapar a fome
E do homem que o mandou embora
Uma praga estes malandros
O que eles querem sei eu
Da rapariga que me contou o seu amor acabado
O que me ficou foi o jeito dela
A afastar o cabelo para trás da orelha
Para melhor ouvir a voz dele que continuava
A soar a magoar
Não insistas é melhor assim

Vim por caminhos antigos
Com cheiros de ervas boas
Onde nunca mais voltei
Se falo deles dizem que os inventei
Que por lá nunca passei
Esta minha mania de contar histórias
A ouvintes amargos e descrentes
Outros longos tortuosos caminhos
Percorri e fui guardando
Lembrança das viagens e dos viajantes
Meus estranhos companheiros
Em encontros fortuitos
De linguagens ínsipidas
Gostei de te conhecer
Um dia voltaremos a falar

Não posso saber o que aconteceu
No mundo em mim
Em todo o tempo que fiz caminhos
E conheci caminheiros
Esquecida da linha de partida
Vou decorando nomes de estações

Licínia Quitério

3.2.25

A VIDA

 A vida é isto

A armadilha

O esconde-esconde

Agora tu o gato

Agora eu o rato

Mais logo tudo muda

Uma batalha

A que se chama paz

A que se chama guerra

E nós no trilho das gaivotas

Areia fora

Mar adentro

E voltar e voltar

E nunca o lugar é o mesmo

E nenhum de nós é igual

Recomeçar

Recomeçar

O infinito deve ser

Este cordel sem pontas soltas

De atar e desatar

Até romper

Voar


Licínia Quitério 


22.1.25

O AZUL

 É uma casa muito antiga

de pessoas muito antigas

que à janela se mostravam

com os pequenos ao colo

a acenar à senhora

que dizia olá menino

e tudo continuava

rua acima rua abaixo

e o azul da casa lá estava

dias e anos passavam

e o pequeno que cresceu

à janela se mostrava

mas já ninguém acenava

à senhora que passava

e a senhora pensava

como o menino cresceu

nem um sorriso me deu

vida acima vida abaixo

o azul continuava


 Licínia Quitério

19.1.25

TESTEMUNHAS

Esta luz este verde este azul

e os recortes da folhagem

no silêncio da tarde

como se não houvesse a estridência

nos campos de batalha

sem luz sem verde sem azul

só ramos secos por testemunhas


Licínia Quitério


7.1.25

O FIO

 Um fio que se rompeu

Foi o vento

Foi o arame

Foi a unha aguçada

Que faz o fio perdido do lençol

Ainda se os fios sofressem de saudade

Se ao menos fossem verdes

Se fossem capazes de atravessar a rua

Muita coisa podia ser

Um fio sem casa

Um fio sem irmandade

Um fio sem memória

Podia ser

vamos lá ver

Podia ser

Um fio de oiro

Esquecido do lençol

A rir a rir

Ao sol

A ensaiar um verso

Sem rimar

Sem rimar


Licínia Quitério


4.1.25

UM FRIO DIFERENTE

 Era uma vez um dia

com um frio diferente

do frio de outros dias

O dia fez-se noite

muito antes da noite de outros dias

A noite acabou como todas as noites

para abrir outro dia

com recados de sombra

Há dias assim a que chamamos noite

e trememos de frio no calor do verão

Um frio diferente de um amor diferente

que o inverno acolheu

Licínia Quitério



1.12.24

AS CIDADES

Frágeis frias feridas

as cidades

feitas por construtores

desfeitas por invasores

na corrente dos séculos dos milénios

sobre o sangue a pedra o metal

Erguidas as aras aos deuses sempiternos

senhores da vingança

semeadores do ódio

poderosos

Cidades de mulheres

frágeis frias feridas

a fabricarem o perdão dos homens

o pão das crianças

a regarem o chão das guerras

até as lágrimas secarem

Cidades bombardeadas

Sobre o pó as mulheres caminham

na esperança de outra terra

onde possam cantar

adormecer

 Licínia Quitério


24.11.24

JARDINS DE INVERNO

 Enquanto passeia nos seus jardins de inverno, a mulher pensa na rapariga que ofertou a pele ao desenho colorido de um rosto e procura perceber por que o fez.

Por certo amou o dono desse rosto e quis amá-lo eternamente, como se diz do fugidio amor.

Se demorou a apagar o desenho, terá sido por medo, não fosse a pele doer ou crescer-lhe uma dor no coração.

Ao fim de muito passear nos seus jardins de inverno, a mulher desistiu de entender a tal rapariga com um amor tatuado.

Há-de aprender a pedir razões à sua pele nua, friorenta, que não guardou um amor fugidio.

Lembrar-se-á vagamente de o ter apagado e sentirá crescer-lhe uma dor no coração, enquanto passeia nos seus jardins de inverno.

 Licínia Quitério



20.11.24

A MONTANHA

Conseguiste subir a montanha de jade

Eu fiquei cá em baixo os pés na areia

O medo fechado na cintura

Não fosses deslizar na verdura da pedra

E cair

E eu sem me mover a afundar-me na quentura

Os olhos presos na tua hora de triunfo

Vamos ficar assim

A cada um seu grito ou sua lágrima

Sua altura ou planura

A montanha é só a montanha

O teu triunfo é a minha aflição

Se tombares

Será no colo do meu medo

Ainda que me afunde

Um pouco mais um pouco mais


Licínia Quitério


 

 

31.10.24

O CHÁ

Insinuam-se nas frestas, trazem aromas de chá e avistamos a espuma a receber-lhe o fio de quentura, a encher a taça, a oferecer-se à mão, à boca, ao corpo, à tessitura do sol nas paredes da tarde. 

É a hora dos relógios, da areia, da água, das árvores sobrantes, dos véus da cor do chá, do arremedo das danças, dos medos, das preces, do calor dos corpos, do calor do chá, do ardor da memória, da febre dos animais, do tremor da grande pedra, do aroma do sangue. 

Na taça, o chá esfriou.


Licínia Quitério


16.10.24

O LUGAR


Bonito é o lugar
Em forma de sossego
Pequeno limpo o lugar

Uma sala aberta à alegria
Uma varanda sobre um mar antigo
Um banco de jardim olhando o vale
Um corpo outro corpo
Uma voz lá ao longe
Um segredo a guardar
Discreto tímido
À espera de existir
O lugar



Licínia Quitério

 

8.10.24

CORAÇÃO

 Pousamos

o coração na mesa dos anos repetentes

 

Perguntamos

porque bates se nunca mais cobriste  

o chão de frio do grande inverno

 

Repegamos

a cor das velhas dores

num teatro de espantos e silêncios

 

Representamos

a comédia que somos

bem ao largo de nós

na ilusão de um invicto perpétuo coração



 Licínia Quitério

2.10.24

O FUMO

Pássaros cegos

carregados de pólvora

sulcam os céus

 

Palavras encharcadas de guerra

sem alfabeto original

sem gramática

rebentam à boca dos generais

 

Nos dias envenenados 

mulheres mudas caminham

homens sobrantes seguem-nas

e vão entoando um estranho canto 

nascido da dor e do fumo


Licínia Quitério


23.9.24

O BOSQUE

 Verde o bosque que passeámos.

Tudo tínhamos

do chá de menta à varanda do estio

de Jacques Brel ao grito dos pavões

das tuas palavras claras aos meus versos infantes.

A verdura dava-nos o sorriso de mãe

e o abraço de amante.

Tínhamos o nome do bosque

inscrito na palma da mão.

Estávamos a salvo dos salteadores de futuro.

 

Foi depois do incêndio

que percebemos a cor do desalento.

O chá de menta amargou

e tudo ardeu

as tuas palavras claras e os meus versos infantes.

A verdura fez-se noite

mas o nome do bosque continua 

na palma da minha mão.

 

Licínia Quitério 


15.9.24

A VARANDA

 

Uma varanda ou peito de pomba

observa a intenção do vento

divisa o longe que humanos não alcançam

Só o céu conhece a hora exacta da largada

antes que a noite venha e a pomba se confunda

com  o peito imóvel da varanda


Licínia Quitério

8.9.24

BALADA

 

a gente passa

a água cai

e eu a ver

sem perceber

que tempo faz

que hora é

há um desacerto

há um engano

há um enredo

e a gente passa

e eu a ver

e a água cai

há uma balada

há uma toada

há uma batida

rente à janela

passa apressado

um coração

e eu sem ver

sem perceber

que a vida vem

que a chuva cai

que a vida vai


Licínia Quitério


 

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