21.5.06

O JARDIM


Claude Monet - Nenúfares

Passeávamos de mãos dadas no jardim,
comíamos os frutos caídos do Outono,
escutávamos o choro das seivas,
com os ouvidos colados nos troncos,
e dizíamos das vozes na prisão.
Espiávamos o voo rasteiro do melro
e falávamos de flamingos em África.
Da boca do leão de pedra, a água jorrava
para o lago pintado de nenúfares.
Sonhávamos voltar a Paris na Primavera.
Visitávamos o gato bravo em sua jaula.
Tínhamos lido O Bom Selvagem.
Havia um prenúncio de chuva
ou o arrepio morava já dentro de nós.
Não sabíamos nada do Inverno.
Quando ele chegou,
encontrou-nos ainda ou de novo no jardim.
Cada qual no seu banco.
As seivas tinham calado os seus lamentos.
O gato morrera nas malhas da raiva.
Os nenúfares tremiam sob as nossas mãos.
Flamingos voavam acima dos castanheiros.
Sim, havíamos de rever Paris na Primavera.


Licínia Quitério, "Da Memória dos Sentidos"

Tenho um jardim de encantos que sabe tudo dos meus segredos de menina. De quando me aventurava e trepava aos ramos e neles me sentava, com os pés a baloiçar, e me imaginava a aparecer e a desaparecer, sempre sorrindo, como o gato de Alice no País das Maravilhas. De quando namorava pelos cantos mais sombrios, mesmo que o namorado fosse o unicórnio azul que só eu via. De quando chorava baixinho porque os joelhos sangravam e o meu pai não podia saber que eu tinha lutado com rapazes. Isso foi no tempo em que eu tinha uma grande pressa de ser crescida.
Passados muitos anos, quando regressei ao jardim foi para lhe dizer que nunca o tinha esquecido, que sempre lhe sentira a falta, mas eu ocupara o tempo todo a crescer. Ele compreendeu e ofertou-me de novo o rumor das folhas, o cheiro da terra, a luz coada pelas ramagens. Dessa vez, já não trepei aos ramos com receio que se quebrassem, já perdera o unicórnio ou ele se perdera de mim, já os joelhos não sangravam porque os rapazes se tornaram meus amigos.
Hoje, visito-o amiúde. Só que ele não sabe que já não sou eu que me passeio. Ao fim de tanto andar, tenho um jardim que em mim passeia.

Licínia Quitério

11 comentários:

Clotilde S. disse...

Lindos! Quer o poema quer o desabafo.Essa pressa de crescer, que todas tivemos....
Um abraço grande querida!

M. disse...

Tão bonito! Gosto muito do que escreves.
Tem graça que temos um post de 2.6.06 (O atalho / Dá-me a Tua Mão, Menina) em que de certo modo esta ideia aparece, ainda que num texto mais curto.)

. disse...

Brutal... Até me apetecia conhecer esse jardim. Mas esse é só teu.

M. disse...

Aqui respondo ao que me deixaste no Fotoescrita: Sim, tenho um enorme prazer em escrever. :-) Adoro a beleza, a musicalidade das palavras e os seus significados. Em qualquer das línguas que conheço. E é-me imprescindível falar e escrever na minha língua, porque o conhecimento que tenho das outras (francês e inglês) não é suficientemente profundo para que possa expressar-me com a mesma intensidade. Entender é uma coisa, escrever essa compreensão é outra, porque cada palavra tem que ser "cheia".
Um beijo.

lique disse...

Belíssimos, tanto o poema como a tua confissão de amor ao teu jardim!
Gosto da tua escrita.
Beijinhos

http://mulher50a60.weblog.com.pt

JPD disse...

OLá Licínia

Aqui nos deixaste um jardim sonhado e um outro sublimado.
Muito bonito.
Belo texto
Bjs

alice disse...

bom dia, licínia,

obrigada pelo teu comentário no meu blog

fico feliz pela tua intervenção num post tão fora do contexto...

agradeço esta oportunidade de vir ler a tua poesia

um grande beijinho,

alice

Clotilde S. disse...

Bom dia para ti! Vim reler o teu passeio no jardim.
Beijo

Hortência disse...

Lindo poema!!
Queria estar nesse jardim
Abraços

RB disse...

posso ir contigo?

margarida disse...

adoro poesia e também jardins...eles lembram da infância e trazem saudades de minha mãe.essa poesia de "visita" ao seu jardim,lembra do belo filme Jardim Secreto,parabéns!vou usá_lo em meu perfil,do Orkut,posso?muitos perfumes prá você.

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