16.2.09

CLARISSE 4

Tão verdade era o sono que Clarisse subiu e poisou na varanda do último andar. No Verão, todos os homens passavam as noites nas varandas. As mulheres vigiavam-nos por detrás das portadas, não fossem eles cair à rua em sobressaltos de vinho e desamor. Na varanda onde Clarisse se achou, estava um homem ainda acordado na sua cadeira de pensar. Tinha poisada no ombro uma rola a que faltava uma asa. Não deram por Clarisse, distraído o homem a contar os carros que subiam a rua e ocupada a ave a alisar com o bico as penas róseas do peito. As paredes de todos os prédios tinham a palidez das pedras colhidas de madrugada. Havia um grande silêncio no mesmo tom, apesar dos muitos carros que desciam e subiam para serem contados. Clarisse disse estou aqui, mas ninguém lhe respondeu. Rodopiou na estreiteza da varanda, mas o homem não desviou o olhar da rua e a rola não suspendeu os esmeros da tarefa. Foi então que Clarisse decidiu abandonar o sítio para que pudesssem ver-lhe a ausência. Sentou-se no parapeito, as pernas para o lado de fora, a baloiçar. Um impulso breve do tronco a fez descer, devagar, com passadas largas, os braços desbravando transparências, o corpo a afundar, a afundar. Do chão da rua, despontou e floriu um leque de mãos de luz. Nele alongou a leveza e ali ficou, tranquila e nua, igual às pedras no leito, antes da madrugada.

Quanto tempo dormiu Clarisse? O tempo sem horas de revisitar a rua das varandas com homens dormentes nas noites de calor. A quantas ruas regressará ainda? Estão tão arruinados, os álbuns.


Licínia Quitério

19 comentários:

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

Uma maravilha, o homem , a rola , a contagem do tempo pelo trânsito, e Clarisse, nas suas aprendizagens...
Mas, um texto não se comenta assim ... fica o registo das minhas impressões e sobretudo , o grande brilho da linguagem, isso o grande brilho da linguagem ...
»á vous mon coup de chapeau»
um beijo

_________ JRMARTO

Manuel Veiga disse...

Clarisse não dormiu - passou ao outro lado do espelho.

subvertendo códigos. e desflorando-se em leveza. como o chão da rua ante a madrugada...

belíssimo.

beijo

Graça Pires disse...

Um texto fantástico! Clarisse construindo um horizonte em volta dos seus hábitos para através deles se apoderar dos sonhos...
Um grande beijo.

bettips disse...

As asas da tua Clarisse, mulher-rola de peito róseo.
Iremos desfolhando álbuns contigo.
De boa e livre vontade.
O livro? Esse virá, amigos existem para te mimarem.
Bjinho

Justine disse...

Através deste texto cintilante de sabedoria me levas em passeio onírico pelas ruas dos álbuns ainda desfolháveis.
Obrigada pelo prazer

Alien8 disse...

Agora com mais tempo, acompanhei a notável Clarisse, li alguns poemas, gostei de tudo o que li. Foi uma surpresa, daquelas mesmo muito agradáveis. Dei um salto ao Outro Sítio, só uma espreitadela.

Os meus parabéns!

De Amor e de Terra disse...

Quanta beleza contida no mundo diáfano das memórias!
E que beleza a tua escrita Amiga!
Parabéns!!!
Bjs.

Maria Mamede

mena maya disse...

Clarisse a voar nas asas do sonho que nunca abandonará!

Fantásticos os textos e as fotografias!

Bijinho

Ad astra disse...

o que eu gostei de Clarisse

jorge esteves disse...

A ausência pode ser remédio de amor, mas também não se aparta das dores da desilusão...

abraços!

© Maria Manuel disse...

encantada coma poeticidade do discurso, enlevada com os sonhos de Clarisse, contoninuo a segui-la por todo o lado...

"Sonhos Sonhados" e "Os Filmes da Minha Vida!" disse...

...a Clarisse aprende
e
todos nós aprendemos com ela!

...visitei
e
gostei muito.

obrigada
xis létinha

Alberto Oliveira disse...

ah! esta quarta clarisse
não tem nada de tola
balançou as pernas e disse
vou voar como uma rola

e voou até ao chão da rua
branca e vestida de nada
que é como quem diz: nua
e ainda não era madrugada


sorrisos nocturnos.

Mar Arável disse...

A sua Clarisse

sabe voar

com os pés no chão

Belo texto

vieira calado disse...

Olá boa noite CARÍSSIMA!

Mas hoje não quero saber nada de poesia!

Estou num bar com 4 uisq´s a bordo a ouvir


Dá-lhe a chupeta...
Dá-lhe a chupeta...


Quer melhor poesia?

Viva o Carnaval!

Um abraço

Arábica disse...

Clarisse se adentrando pelas ruas e varandas da memória...Suave a pena da rola que escreve, na esquadria dos olhos -ainda- d'água...


Beijo para a Clarisse,
beijo para ti.

Hoje com pastel de nata.

Saulo Prado disse...

Estou só batendo o ponto!!!
Vim conhecer o seu cantinho; e estou adorando, serei presença constante aqui.
Parabéns...

M. disse...

Muito, muito belo.

De Amor e de Terra disse...

É bom sonhar, adormecida sobre os Albuns antigos e poder voar por cima das varandas e de tudo quanto delas se avista...

Bj

Maria Mamede

arquivo

Powered By Blogger
 
Site Meter