20.6.10

QUENTE FOI O VERÃO

Era no tempo do estio em que as searas não passavam da lembrança do verde ondear. Os caminhos ardiam e os animais fugiam, as árvores ardiam e assobiavam um bailado de fogo. Veio o medo das bruxas e elas fugiam das chamas que lhes queimavam o nome. Os corações ardiam de uma paixão desconhecida, surgida das matas frias de um desejo devorador e antigo. Falavam de demónios vermelhos vindos de longe para fazerem a guerra. E os homens respondiam: "Nós trazemos o corpo inteiro e os livros da paz". E o medo das bruxas encorpava. Mulheres havia que esconderam as crianças. Era o medo do demónio, do fogo, da guerra, das sombras más que uivavam como lobos, diziam-lhes. O pão, escasso e duro, era fechado nas arcas. E os homens diziam: "Nós trazemos o pão, o leite, o mel e o vinho". No luar se encontraram, afastados, resguardados dos estranhos que diziam palavras estranhas como livro e paz. Lá no cimo, ao longe, as matas estavam acesas, um fogo rasteiro, de devorar restolho e afugentar coelhos. De homens nem sinal. E as mulheres diziam: "Foi o demo que lá passou. De manhã cedo vai-se embora e veste-se como um homem e fala como um homem, com palavras novas como livro e paz". Quando o dia nasceu, os homens limparam os caminhos e lavaram as águas e não  roubaram o pão e falaram às crianças numa língua que só elas entenderam. Já havia mulheres que diziam: "Eles não trazem a guerra. Lavaram a água e limparam os caminhos". Havia ainda os que diziam: "Mil formas tem o demo. Até de anjo se veste". E persignavam-se. No próximo luar, os homens sentaram-se, já mais perto dos que ali pertenciam, abriram livros e leram histórias de encantar. Um cão veio enroscar-se ao pé dum homem que lia. As crianças tinham os olhos muito abertos e diziam "mais" quando uma história acabava. Era já tarde quando se recolheram. De madrugada, uma mulher madura e esfarrapada bateu à porta dos homens. Trazia uma couve. "Façam um caldo, mas não contem a ninguém que eu aqui estive". Era sempre a primeira a chegar para ouvir as histórias. Sozinha, que desquitadas não eram boa companhia. Limpos todos os caminhos, lavada toda a água, lidos todos os livros, os homens partiram. "Afinal eram boa gente". E ouviu-se o choro abafado de uma mulher e o latido de um cão. Os homens subiram a serra, com cautela. Em volta tudo ardia.

Licínia Quitério

9 comentários:

Mel de Carvalho disse...

"Quando o dia nasceu, os homens limparam os caminhos e lavaram as águas e não roubaram o pão e falaram às crianças numa língua que só elas entenderam. Já havia mulheres que diziam: "Eles não trazem a guerra. Lavaram a água e limparam os caminhos".

Isto é belíssimo, estimada Licínia. Todo o conto o é!

Grata, muito grata,
Beijo
Mel

Maria P. disse...

Que maravilha...

:)Beijinho*

A Lusitânia disse...

Obrigada pela tua escrita e pela tua visita.

Voltarei; apenas faço uma pausa necessária.

Zélia Guardiano disse...

Licínia!
Que belo conto, que belo blog!
Escreves lindamente...
Encantei-me!
Grande abraço

Heduardo Kiesse disse...

um beijinhom grande pelas palavras que nos ofereces Licinia!

Justine disse...

Belíssima alegoria, Licínia!
É demasiado tarde reconhecer a qualidade dos homens só depois de eles partirem...

Manuel Veiga disse...

não sei se as bruxas continuam. apesar de lhes queimarem o nome. -

sei porém que há textos que me "enfeitiçam".

como filigrana dos melhores artesãos da escrita. os teus.

admirável.

beijos

M. disse...

Quase parece uma parábola. Gosto.

M. disse...

Ao reler voltei a achar parecenças com as parábolas. Será que o tal menino de outros tempos irá ler este teu texto?

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