Era no tempo do estio em que as searas não passavam da lembrança do verde ondear. Os caminhos ardiam e os animais fugiam, as árvores ardiam e assobiavam um bailado de fogo. Veio o medo das bruxas e elas fugiam das chamas que lhes queimavam o nome. Os corações ardiam de uma paixão desconhecida, surgida das matas frias de um desejo devorador e antigo. Falavam de demónios vermelhos vindos de longe para fazerem a guerra. E os homens respondiam: "Nós trazemos o corpo inteiro e os livros da paz". E o medo das bruxas encorpava. Mulheres havia que esconderam as crianças. Era o medo do demónio, do fogo, da guerra, das sombras más que uivavam como lobos, diziam-lhes. O pão, escasso e duro, era fechado nas arcas. E os homens diziam: "Nós trazemos o pão, o leite, o mel e o vinho". No luar se encontraram, afastados, resguardados dos estranhos que diziam palavras estranhas como livro e paz. Lá no cimo, ao longe, as matas estavam acesas, um fogo rasteiro, de devorar restolho e afugentar coelhos. De homens nem sinal. E as mulheres diziam: "Foi o demo que lá passou. De manhã cedo vai-se embora e veste-se como um homem e fala como um homem, com palavras novas como livro e paz". Quando o dia nasceu, os homens limparam os caminhos e lavaram as águas e não roubaram o pão e falaram às crianças numa língua que só elas entenderam. Já havia mulheres que diziam: "Eles não trazem a guerra. Lavaram a água e limparam os caminhos". Havia ainda os que diziam: "Mil formas tem o demo. Até de anjo se veste". E persignavam-se. No próximo luar, os homens sentaram-se, já mais perto dos que ali pertenciam, abriram livros e leram histórias de encantar. Um cão veio enroscar-se ao pé dum homem que lia. As crianças tinham os olhos muito abertos e diziam "mais" quando uma história acabava. Era já tarde quando se recolheram. De madrugada, uma mulher madura e esfarrapada bateu à porta dos homens. Trazia uma couve. "Façam um caldo, mas não contem a ninguém que eu aqui estive". Era sempre a primeira a chegar para ouvir as histórias. Sozinha, que desquitadas não eram boa companhia. Limpos todos os caminhos, lavada toda a água, lidos todos os livros, os homens partiram. "Afinal eram boa gente". E ouviu-se o choro abafado de uma mulher e o latido de um cão. Os homens subiram a serra, com cautela. Em volta tudo ardia.
Licínia Quitério
9 comentários:
"Quando o dia nasceu, os homens limparam os caminhos e lavaram as águas e não roubaram o pão e falaram às crianças numa língua que só elas entenderam. Já havia mulheres que diziam: "Eles não trazem a guerra. Lavaram a água e limparam os caminhos".
Isto é belíssimo, estimada Licínia. Todo o conto o é!
Grata, muito grata,
Beijo
Mel
Que maravilha...
:)Beijinho*
Obrigada pela tua escrita e pela tua visita.
Voltarei; apenas faço uma pausa necessária.
Licínia!
Que belo conto, que belo blog!
Escreves lindamente...
Encantei-me!
Grande abraço
um beijinhom grande pelas palavras que nos ofereces Licinia!
Belíssima alegoria, Licínia!
É demasiado tarde reconhecer a qualidade dos homens só depois de eles partirem...
não sei se as bruxas continuam. apesar de lhes queimarem o nome. -
sei porém que há textos que me "enfeitiçam".
como filigrana dos melhores artesãos da escrita. os teus.
admirável.
beijos
Quase parece uma parábola. Gosto.
Ao reler voltei a achar parecenças com as parábolas. Será que o tal menino de outros tempos irá ler este teu texto?
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