11.7.10

ENLOUQUECER

Que fazer deste dia a transbordar
músicas imprecisas de longínquas terras,
vozes esfarrapadas, ásperas, doridas,
dos homens que já viram tudo, que já calaram tudo
e  têm  uma navalha sobre os sonhos
e as mãos aflitas, desapossadas da forja e do metal?
Homens que levaram restos de homens pelos ares,
abriram as portas ao monstro e ao chicote,
viram o negro a rasgar-se em vermelho,
a escorrer pela savana donde os leões fugiram.
São loucos, dizem, estamos loucos, dizem.
Fizeram filhos antes de enlouquecerem
e não lhes disseram do sangue antes das flores,
das cordas, das feridas, da raiva, do medo.
Deram-lhes pão de farinhas amassadas
em águas que limparam da antiga sujidade.
Falaram-lhes de um mundo que haveria
de ter as fomes saciadas e planetas amáveis
onde seriam príncipes respeitados, beijados.
Que fazer agora deste dia em ruínas,
os fantasmas saindo dos escombros
e o desprezo dos filhos e a zanga das mulheres
e uma cruz de silêncio a apagar-lhes os gritos?
Mais logo cantarão, enlouquecidos.

Licínia Quitério

12 comentários:

Rui Fernandes disse...

Amanhã voltarão a carregar as pedras, a areia e o cimento até ao cima da montanha para recomeçar a construção da cidade, amanhã voltarão a criar e a cultivar as suas crias para alimentar o renascer do fogo luminoso, amanhã voltarão a amar para relançar a semente da esperança, amanhã voltarão a recolher do chão a dor do trabalho esforçado e dos partos amaldiçoados pelos deuses com as mãos calosas e os dedos gretados... E enquanto cantam em redor da fogueira da noite e da reunião dos corações trocam falas uns com os outros para fundar o poder partilhado e refundar a cidade dos homens.

hfm disse...

Tristemente belo.

Justine disse...

Que fazer? Ir escrevendo poesia, quem sabe fazê-lo. Lê-la, quem não sabe...

Virgínia do Carmo disse...

Nada a fazer, suspeito, que o tempo é de memórias e elas não se compadecem...

Bjos

Maria disse...

Fortíssimo, Licínia. E muito belo.

Beijo.

Graça Pires disse...

Maravilhoso!
Enlouquecemos. Acasalamos no olhar o azar e a sorte...
Um beijo, minha amiga

Alberto Oliveira disse...

... se as coisas tivessem corrido bem na África do Sul, ainda estaríamos em festa e esquecidos momentaneamente da caldeirada onde estamos metidos, ruminou tristonho Eládio da Tia Maria Seja Bem Aparecida. Ligou para os arredores de Madrid onde trabalhava numa quinta na apanha de cerejas azuis o seu compadre Romão Sem Euro Nem Tostão. "Então isso por aí, como vai?". Romão nem pestanejou quando falou para o móvel "Tudo na mesma, compadre. O meu patrão está tão contente com o futebol que até já me chama Mourinho de Trabalho e Mal Pago."


Sorrisos.

Joaninha disse...

Parabéns Licínia. Belo e ao mesmo tempo triste. "Escravidão" que teima em manter-se nos nossos dias por esse mundo além.

Um beijinho

Manuel Veiga disse...

também as velhas profecias eram loucura de alguns.

e rasgaram o tempo. e ergueram tempestades que perduram...

que o Sonho perdure.

excelente, minha amiga

beijos

Alien8 disse...

Há contacto, sim, mas tu foste mais explícita. Eu guardei algumas imagens para mim, tu deste-as. Parece-me uma boa opção. Li e reli com muito prazer e fez todo o sentido para mim. Já agora, também gostei muito do anterior, que ainda não tinha lido.

© Maria Manuel disse...

sabes, este poema evoca-me aqueles que, ou ainda em início de vida tinham sonhos e projectos, chegando talvez mesmo a construir alguns afectos e um lugar próprio, ou aqueles que já o tinham construído com família e emprego, e, por motivos vários, mas neste poema sinto ser por serem enviados para a guerra, tiveram de partir e, naturalmente, vivenciaram experiências e emoções terríficas, sem retorno, que, de volta a casa, nunca mais lhes permitiram serem os mesmos, possessos que ficaram da loucura vivida.

beijinho, Licínia.

bettips disse...

Os que se salvaram
pelo romance pela ternura pela música
pela docilidade das dores
...
nunca esquecerão o coração negro da guerra. Esta ou outra.
Ensinarão aos filhos o caminho do diálogo e morrerão sem o remorso dos gritos.
Bj

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