26.5.25

A COTOVIA

 Estava escuro. 

Era inverno e os abutres nos penhascos aguardavam a morte dos cervos.

Temiam que as andorinhas da primavera interrompessem o manjar de sangue vivo em corpo morto. 

Foi longo aquele inverno e os abutres cuidavam de quebrar os ovos das andorinhas, antes que os filhos eclodissem em Abril.

Foi longo o Abril da regeneração dos ninhos, da fuga dos abutres, das correrias dos cervos, dos trigos amadurecidos por mãos quase loucas de esperar.

Escureceu o Maio e as searas curvam-se ao vento e rumorejam, num mar de sobressaltos. 

Avistaram pássaros negros, filhos espúrios dos abutres, em voos silenciosos, a ensaiarem a rapina.

Há um canto longe, um grito, um aviso no cimo dos penhascos: 

- Escutem o canto da cotovia.

Licínia Quitério


 

23.5.25

O VAGABUNDO

Caminha lesto o vagabundo,
à procura da origem de seus males.
Acossado pelos lobos,
ignorado pelos reis.
Tem encontro marcado,
anunciado pelo bater do coração.
Os olhos navegam pelas pedras
que sabe serem estrelas.
Por vezes pega numa, guarda-a no bolso
e o casacão curva-se desabado.
Vem do sítio dos loucos deserdados,
com montanhas de jade e de ternuras.
Pela boca falam vozes comandantes:
Agora vai, agora ama, agora mata.
Só não pode parar o vagabundo.
A urgência de chegar não o permite.
As mãos morenas afastam sombras
- intrusos a impedir o progresso
do corpo já cansado.
Se desatento, tropeça num coral, numa romã,
demónios mascarados de natura.
Mas logo se endireita e continua.
Quando parar, será de supetão.
As vozes deixarão de o incitar,
as estrelas no casaco o brilho perderão.
E lenta, lentamente, seu corpo vergará
até ao chão.
Pela primeira vez, verá os muros do castelo.
Ilusão ou verdade? Não lhe interessa.
Já não pobre, não louco. Apenas corpo.
Até que os reis e os lobos apareçam.


Licínia Quitério


18.5.25

IGNORÂNCIA

 Se não sabeis da minha sede

porque me mostrais água?

Se não entendeis o meu frio

porque me dais roupa?

São tão altas as minhas montanhas

e vós falais dos degraus lá de casa.

Eu não canto vós sabeis

então porque imitais a minha voz?

Só me serve este ínfimo quarto

onde guardo o meu cofre

que julgais cheio.

Ignorais o nada com que o encho.


Licínia Quitério

1.5.25

ENREDADA


Presa estou no verde da cidreira,
na sanguínea do bago da romã,
na coroa de céu do agapanto,
na seda do lírio, no linho,
da semente ao lençol,
do lençol à lenda de esponsais,
na noite da coruja,
no rouxinol do imperador,
na crueldade dos impérios,
no amarelecer da pele,
no rosado do pêssego.
Enredada estou na quadrícula
das sílabas, no ardil das palavras,
no labirinto dos poemas
de todos os poetas
de todos os tempos,
no cansaço das dúvidas,
do clamor das servidões,
da lentidão das utopias.
Presa e enredada estou
na soberba vontade de saber
a carne do infinito.

Licínia Quitério

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