Não basta olhar o mar. É preciso forçá-lo a ser as nossas lágrimas. Mergulhar nele os astros há muito adormecidos na franja do tapete. Recuperar o sal e semear a praia. Esperar pelas algas e entrançar os cabelos. Beber no côncavo da onda e afastar os peixes. Não pronunciar escamas. Antes pétalas. Sempre dizer mergulho e não naufrágio. Somos velas em terra. Por que não navegar?
Vagueava pelo doirado da praia, com as sandálias na mão, a baloiçar. Afagava maternalmente um cão que corria ao seu encontro. Baixava-se e apanhava conchas. Devolvia-as ao mar e a boca desenhava um sopro, ou um beijo. Acenava às gaivotas com braços brancos como lenços. Sempre sorria quando olhava o céu. Deixava um rasto leve nas areias, como se pena fosse. Não sei a cor dos olhos, dos cabelos. Podiam mesmo não ter cor, como se diz da água. Bailava em torno de uma pedra baça e nela acendia brilhos de fogueira.Pisava rendas de espuma e uma poalha de estrelas lhe salpicava a leveza da saia. Há quanto tempo a não vejo. Vou perguntar ao mar se ma levou. Licínia Quitério
Foto de L.Q. Um homem dorme nas arestas do frio os ossos apoiados na lembrança de um verão abrasador. Eis o sono do homem que percorreu os mares e regressou. Nos olhos o esplendor da verdura das ilhas. As mãos em leque na explicação das aves. Parava em Maio a ouvir o eco dos trovões pelas esferas. Sentou-se amarrotado nos degraus cor de cinza da pobreza. Era quando cantava com a voz doente do remorso. Cansou-se da viagem e desistiu da água e demandou o porto. Chorou ao tactear o gume da cidade. Ensurdeceu que a música era grito. Emudeceu na espera do silêncio. Guardou no bolso a aspereza do dia. Adormeceu obedecendo à noite. Não sabe se sonhava. Não sabe se dormia.
Arredou a cortina e espreitou a rua. O dia tinha sol, daquele a que se costuma chamar radioso. Devia ser Domingo. Há muito que o calendário deixara de lhe interessar, mas percebeu que a padaria estava fechada e viu uma jovem que andava com todo o vagar, parando de vez em quando para tirar uma fotografia. Pelas sombras das casas projectadas no passeio, concluiu que ainda não era meio-dia. Há muito deixara de olhar para os relógios. Não eram eles, nem os calendários que marcavam o passo do tempo. Maquinalmente, acendeu um cigarro. Era o último do maço. Que chatice, pensou. Tomou banho. Olhou-se no espelho e, com surpresa, viu uns fiozinhos líquidos a correrem dos olhos e a esconderem-se nas barbas. Há muito que isso não lhe acontecia. Concluiu: Tenho de ter mais cuidado. Um homem sem a companhia de um cigarro pode ser apanhado pela tristeza. Saiu apressado à procura de uma tabacaria.
O tempo nos parques é íntimo, inadiável, imparticipante, imarcescível. Medita nas altas frondes, na última palavra da palmeira, na grande pedra intacta, o tempo nos parques. O tempo nos parques cisma no olhar cego dos lagos, dorme nas furnas, isola-se nos quiosques. Oculta-se no torso muscular do ficus, o tempo nos parques. O tempo nos parques gera o silêncio do piar dos pássaros, do passar dos passos, da cor que se move ao longe. É alto, antigo, presciente o tempo nos parques. É incorruptível; o prenúncio de uma aragem, a agonia de uma folha, o abrir-se de uma flor deixam um frémito no espaço do tempo nos parques. O tempo nos parques envolve de redomas invisíveis os que se amam; eterniza os anseios, petrifica os gestos, anestesia os sonhos, o tempo nos parques. Nos homens dormentes, nas pontes que fogem, na franja dos chorões, na cúpula azul, o tempo perdura nos parques; e a pequenina cutia surpreende a imobilidade anterior desse tempo no mundo porque imóvel, elementar, autêntico, profundo é o tempo nos parques.
VINICIUS DE MORAIS
Passeiam-se nos parques como gatos. Deslizando, com elegância e sem pressas. Apurando os sentidos, a reconhecer o território. Afagam o tronco de uma árvore, olham a copa e, se fosse da sua natureza, trepariam e ficariam muito serenos, deitados no garfo de dois ramos jovens. Esmagam nos dedos uma folha de lúcia-lima e cheiram-na, aspiram-na, com sensualidade disfarçada. Pontapeiam uma pinha caída no saibro do caminho, para depois, mais adiante, a apanharem e a arremessarem. Como um gato faz com um novelo. São solitários. Evitam cruzar-se com outros exploradores. Procuram tomar caminhos diversos. Debruçam-se nos lagos, molham as pontas dos dedos e não as enxugam. Às vezes passam-nas no rosto. Espiam os pássaros, detêm-se, para não os assustarem. Os gatos, esses, aparecem de noite. É o seu tempo dos parques. É também o tempo de muitos outros bichos que viram os homens sem serem vistos. Dos mistérios dos parques só os gatos sabem. Nunca os revelarão. Os poetas sabem disso, mas continuarão a deslizar nos parques, imitando os gatos. Na esperança de um dia saberem ler o que eles trazem inscrito nas pupilas.
e a minha amiga disse “é preciso que chova abundantemente chova”. disse-o com o lápis afiado a bailar na folha amarelada do caderninho em que desenha histórias de chuvas que só ela sabe. palavras de poeta húmidas e ferventes a colorir as flores do sangue em nossas veias. a lavar as ruas das sombras incoerentes.
Diz frases curtas, bonitas, sempre precedidas de leves silêncios. Traz consigo livros e cadernos e lápis de cor e amostras de lãs grossas de cores, diria, tropicais. Com os dedos finos e longos enrola e desenrola fios de missangas, enquanto fala das gaivotas, das pedras, das chuvas. Para, pensativa, entre dois golos de chá de camomila, para ver por dentro a acácia dos seus sonhos recorrentes. Meio envergonhada, pede-me que leia um poema que escreveu durante a última insónia. Escrito à mão, numa caligrafia de menina prendada. É uma Senhora Poetisa, mas ninguém a conhece. Um dia, hei-de levá-la ao cimo do meu monte de planetas e gritar o seu nome. Quando ela voltar a casa, poderá lê-lo nas pedras da calçada em frente à porta. Uns se espantarão ao ver desenhada uma acácia. Outros dirão que são apenas sombras incoerentes.
P.S. Dedico este post a todos os poetas do meu País que nunca viram os seus trabalhos publicados. Na sombra das gavetas, há muitos e belos poemas à espera dos leitores que com eles possam voar. Quem sabe um dia...
Na vila velha, a casa velha, ou as veias nas fendas onde correm trepadeiras de campainhas azuis que sempre voltam com as andorinhas, ou os gatos invisíveis nos parapeitos, a lamber feridas inventadas, ou os restos teimosos da tinta verde nas paredes da sala de jantar, ou o frio respirar das lagartixas no beiral do telhado azul de nuvens raras. Lá dentro, uma tosse miúda, persistente, ou um ranger de portas empenadas ou os talheres a tilintar na mesa, a abafar suspiros censurados, ou os gritos do medo pelo escuro ou o piar do velho mocho ou as correrias das crianças: não me apanhas, não me apanhas… Ali a casa ainda habitada a alimentar ruínas.
Licínia Quitério, "Da Memória dos Sentidos"
"Por fim, depois da Revolução, creio, conseguiu pensões do Estado que lhe davam para viver. Mas os cães e os gatos, que tratava como filhos, levavam-lhe tudo. Viviam com Ela, na casa que foi envelhecendo, rachando, apodrecendo. Por dentro e por fora. Foi fechando salas, desligando luzes, pregando janelas. Não deixava ninguém entrar. Não permitia que se visse o que era fácil de adivinhar. Atendia as pessoas a uma janela, por último já só entreaberta. Também Ela foi ficando velha, encurvando, encolhendo. " ................................
"Não, nunca aceitou a disciplina do Lar de Idosos. Era difícil de aturar, mal-educada, agreste para empregados e visitas. Detestava tudo e todos. Dizia-se presa. Teimava, iludia vigilâncias e conseguia o cigarro, o uísque. Queria voltar para a sua “barraca”, como, com requebros de doçura, chamava aos restos da casa que afinal havia de lhe sobreviver. Duram tanto, as casas, não acha? As pessoas, não. Depois, as casas ficam vazias. É uma pena. Antes que me esqueça. Reparou que a casa lhe ganhou o nome? Passou a ser “A Casa de Ela”. "
Lá dentro uma castanha brava um tronco de alfazema colhido no quintal uma folha de choupo que me bateu à porta uma bolota que chegou do sul uma falha de xisto um pedaço de lava do vulcão uma minúscula rosa do deserto uma vieira um búzio uma estrela do mar
Tudo tão simples
A natureza veio à minha casa descansar
Há quanto tempo foi que, pela última vez, paraste e te sentaste e respiraste fundo e fechaste os olhos e folheaste o álbum das tuas imagens? Eu quero dizer aquele álbum a que colaste a etiqueta "Coisas Simples". Já não te lembras. É natural. Depois de tantos temporais, de tantas guerras, de tantos relatos em grito sobre essas guerras e esses temporais, como deves estar cansado. Tão cansado que tens medo de parar. Ou vergonha... Não tenhas. Acredita em mim. Parar é reconhecer a Vida. Pode acontecer que sintas um leve arrepio. Um estremecimento como se adivinha na relva pela tardinha. Não te assustes. É o sinal de que estás pronto para saborear de novo as pequeninas coisas que havias esquecido. Foram elas que fizeram de ti um homem grande. E continuam ao teu dispor. E gostam que as revejas, de olhos fechados. Com um sorriso doce. Assim mesmo. Assim...