9.11.06

DAS RUÍNAS

foto cedida pela Tina e pervertida por L.Q.

Na vila velha, a casa velha,
ou as veias nas fendas onde correm

trepadeiras de campainhas azuis

que sempre voltam com as andorinhas,

ou os gatos invisíveis nos parapeitos,

a lamber feridas inventadas,

ou os restos teimosos da tinta verde

nas paredes da sala de jantar,

ou o frio respirar das lagartixas no beiral

do telhado azul de nuvens raras.

Lá dentro, uma tosse miúda, persistente
,
ou um ranger de portas empenadas

ou os talheres a tilintar na mesa,

a abafar suspiros censurados,

ou os gritos do medo pelo escuro

ou o piar do velho mocho

ou as correrias das crianças:

não me apanhas, não me apanhas…

Ali a casa ainda habitada

a alimentar ruínas.

Licínia Quitério, "Da Memória dos Sentidos"


"Por fim, depois da Revolução, creio, conseguiu pensões do Estado que lhe davam para viver. Mas os cães e os gatos, que tratava como filhos, levavam-lhe tudo. Viviam com Ela, na casa que foi envelhecendo, rachando, apodrecendo. Por dentro e por fora. Foi fechando salas, desligando luzes, pregando janelas. Não deixava ninguém entrar. Não permitia que se visse o que era fácil de adivinhar. Atendia as pessoas a uma janela, por último já só entreaberta.
Também Ela foi ficando velha, encurvando, encolhendo. "
................................

"Não, nunca aceitou a disciplina do Lar de Idosos. Era difícil de aturar, mal-educada, agreste para empregados e visitas. Detestava tudo e todos. Dizia-se presa. Teimava, iludia vigilâncias e conseguia o cigarro, o uísque. Queria voltar para a sua “barraca”, como, com requebros de doçura, chamava aos restos da casa que afinal havia de lhe sobreviver. Duram tanto, as casas, não acha? As pessoas, não. Depois, as casas ficam vazias. É uma pena. Antes que me esqueça. Reparou que a casa lhe ganhou o nome? Passou a ser “A Casa de Ela”. "

(excertos de um conto)


Licínia Quitério

25 comentários:

Anónimo disse...

A memória das casas... a alma das casas! já os romanos a sentiam ao venerar os deuses Lares.

Já oivi o Luís gaspar lendo os textos que ele próprio, julgo, seleccionou do seu blogue. Acho que ele escolheu bem e o intimismo da escrita soa melhor ainda na sua bonita voz.
um abraço
António

Era uma vez um Girassol disse...

Dizem que as casas morrem com os seus donos.
Conseguiste, mais uma vez a simbiose prefeita entre poema e texto. Arrepiante, assustador, tão verdadeiro.
Assim...tudo acaba em ruínas.
Beijinhos

mfc disse...

As casas podem ter perdido quem as habite, mas não perdem as suas memórias!

agua_quente disse...

Talvez as memórias de quem as habitou impregnem as paredes e as portas em ruínas.
Ler-te é sempre um privilégio!
Beijos

Ana Prado disse...

União perfeita entre a fotografia e os textos fascinantes que aqui apresenta. Comovente a forma como aborda os restos da assutadora grande viagem.
Muito obrigada, pela possibilidade de a poder ler.

Um grande abraço

Bandida disse...

quantas vidas. lá dentro.





abraço!
_______________

Maria P. disse...

Deves calcular como gostei deste tema!

Beijinho:)

tb disse...

A memória das casas. Casas com vida que contam histórias.
Gosto de vir aqui e deixo-te beijinhos

Anónimo disse...

a impressão que se tem das/nas casas abandonadas(?) é deveras forte.
escreves com mestria. esse post, então?! encantamento: talvez a melhor palavra que traduza o meu sentimento após reler.
um beijo fraterno.

Teresa David disse...

Uma história infelizmente bem mais comum do que seria desejável de solidão no feminino, história que conheço na vida real em vários casos, e que as palavras e a imagem aqui tão exemplarmente tratam.
Bjs
TD

Maria Carvalho disse...

Adorei o que li. Beijos.

M. disse...

Estes duetos são simplesmente um prazer.

Lord of Erewhon disse...

Belo poema!

Diafragma disse...

Impressionante.
Faz-nos descer cada vez mais fundo.
Uma versão muito viva e actual da Divina Comédia.

Rosa Brava disse...

...e vamos envelhecendo.
E as casas.
E as portas que lascam,
os vidros que partem
e as cortinas amarelecem.
E na pouca luz que se enxerga
um vulto enterrado
no cadeirão já gasto
afaga carinhosamente
o gato de estimação...


Um abraço e bom fim de semana ;)

esse disse...

O poema é belíssimo.
O passado a persistir até ao fim ...

Fiquei a pensar no tempo e no espaço e na relação entre os dois...estranho, à medida que o tempo avança, o espaço diminui...

Reflexões para outros momentos

beijinho

Naeno disse...

Muito lindo o teu blog, bem como esta poesia que lhi, além do documentario.

Voltarei aqui mais vezes.

TAPERAS

É que eu conheço cada estrada desta vida,
como conheço, tão bem, a palma de minha mão,
Que em mistérios em cada linha mal traçadas,
que tem mais encruzilhda que veredas no sertão.

Eu não tenho o teu amor.
E se o tivesse era bom,
ele estaria bem guardado,
como o meu, junto do meu.
dentro do meu coração.

As taperas que fizemos moradia,
adoeceram de saudades, porque nunca acontecia,
de não ficar um trapo nosso nas paredes,
como velha tatuagem, resistindo toda a vida.

Hoje saudoso, como se em tempo de guerra,
houvesse perdido tudo, sem motivoss prá contar.
Te peço dá-me um beijo louco, apaixonado,
pois troveja no meu peito, tanto amor, tanta verdade.

Um beijo

Naeno

Anónimo disse...

comovente...

Alberto Oliveira disse...

Hoje não vai a "carta do costume". Porque o teu post me fez vir à lembrança um pedido recente que um velho amigo me fez. Que lhe fotografasse a Vila em Lisboa onde ele residiu desde que nasceu até ao momento em que saiu de Portugal antes da revolução. Acedi embora não tendo a certeza se a tal Vila ainda existia, passados tantos anos. Existia. E fotografei-a. Com o chão coberto de erva com uns bons centímetros de altura e nas janelas onde antes havia caixilhos e vidros, o cimento fechou-as de vez. As escadas de ferro de acesso aos andares superiores comidas de ferrugem pelo desuso. E um silêncio ensurdecedor de um aglomerado de antigas residências sem pessoas dentro, de um pedaço de Lisboa que parou no tempo. Nem marcas de um passado que tinha crianças a brincar. Apenas os restos mortais de habitações cheias de memórias de quem lá viveu e que as fotografias que tirei não revelam. Acho que não vou enviar estas imagens ao meu amigo.

beijos e uma óptima semana!

APC disse...

O poema é fascinante e reli-o.
O seu principiar trazia o cheiro do húmus que Raúl Brandão retratou, e todo ele é espelho do que se não vê mas se sabe e reconhece.
O trecho deixa água na boca.
Não pude evitar lembrar-me da minha avó: "Queria voltar para a sua “barraca”, como, com requebros de doçura, chamava aos restos da casa que afinal havia de lhe sobreviver.".
Invadi este Sítio de Poema, porque os poemas são para se deixarem invadir e os teus sabem deixar-se sê-lo.
["sabem deixar-se sê-lo"?... O que é que eu já fiz para aqui? Lol]

Teresa David disse...

Como já tinha comentado este post passo aqui só para deixar dsejos de uma boa semana.
bjs
TD

vida de vidro disse...

Das memórias que se agarram às paredes das velhas casas em ruínas. Os locais guardam algo da alma de quem os habitou. **

aquilária disse...

belíssimo poema, licínia.
e gostei desses excertos do conto, em que a casa e a pessoa que a habita são uma só alma. porque, na que, fisicamente, sobrevive, restará, sempre, a memória da que se foi embora.
não somos nós, tantas vezes, casas abandonadas?
um enorme abraço e a minha estima e apreço.

Maria P. disse...

Está um desafio na Casa para a vizinha:))

Diafragma disse...

Vim ler-te outra vez e continuo a gostar muito.

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