Foto de L.Q.
Um homem dorme nas arestas do frio
os ossos apoiados na lembrança
de um verão abrasador.
Eis o sono do homem
que percorreu os mares e regressou.
Nos olhos o esplendor da verdura das ilhas.
As mãos em leque na explicação das aves.
Parava em Maio a ouvir
o eco dos trovões pelas esferas.
Sentou-se amarrotado
nos degraus cor de cinza da pobreza.
Era quando cantava
com a voz doente do remorso.
Cansou-se da viagem
e desistiu da água
e demandou o porto.
Chorou ao tactear o gume da cidade.
Ensurdeceu que a música era grito.
Emudeceu na espera do silêncio.
Guardou no bolso a aspereza do dia.
Adormeceu obedecendo à noite.
Não sabe se sonhava.
Não sabe se dormia.
Arredou a cortina e espreitou a rua. O dia tinha sol, daquele a que se costuma chamar radioso. Devia ser Domingo. Há muito que o calendário deixara de lhe interessar, mas percebeu que a padaria estava fechada e viu uma jovem que andava com todo o vagar, parando de vez em quando para tirar uma fotografia. Pelas sombras das casas projectadas no passeio, concluiu que ainda não era meio-dia. Há muito deixara de olhar para os relógios. Não eram eles, nem os calendários que marcavam o passo do tempo. Maquinalmente, acendeu um cigarro. Era o último do maço. Que chatice, pensou. Tomou banho. Olhou-se no espelho e, com surpresa, viu uns fiozinhos líquidos a correrem dos olhos e a esconderem-se nas barbas. Há muito que isso não lhe acontecia. Concluiu: Tenho de ter mais cuidado. Um homem sem a companhia de um cigarro pode ser apanhado pela tristeza.
Saiu apressado à procura de uma tabacaria.
Licínia Quitério
Um homem dorme nas arestas do frio
os ossos apoiados na lembrança
de um verão abrasador.
Eis o sono do homem
que percorreu os mares e regressou.
Nos olhos o esplendor da verdura das ilhas.
As mãos em leque na explicação das aves.
Parava em Maio a ouvir
o eco dos trovões pelas esferas.
Sentou-se amarrotado
nos degraus cor de cinza da pobreza.
Era quando cantava
com a voz doente do remorso.
Cansou-se da viagem
e desistiu da água
e demandou o porto.
Chorou ao tactear o gume da cidade.
Ensurdeceu que a música era grito.
Emudeceu na espera do silêncio.
Guardou no bolso a aspereza do dia.
Adormeceu obedecendo à noite.
Não sabe se sonhava.
Não sabe se dormia.
Arredou a cortina e espreitou a rua. O dia tinha sol, daquele a que se costuma chamar radioso. Devia ser Domingo. Há muito que o calendário deixara de lhe interessar, mas percebeu que a padaria estava fechada e viu uma jovem que andava com todo o vagar, parando de vez em quando para tirar uma fotografia. Pelas sombras das casas projectadas no passeio, concluiu que ainda não era meio-dia. Há muito deixara de olhar para os relógios. Não eram eles, nem os calendários que marcavam o passo do tempo. Maquinalmente, acendeu um cigarro. Era o último do maço. Que chatice, pensou. Tomou banho. Olhou-se no espelho e, com surpresa, viu uns fiozinhos líquidos a correrem dos olhos e a esconderem-se nas barbas. Há muito que isso não lhe acontecia. Concluiu: Tenho de ter mais cuidado. Um homem sem a companhia de um cigarro pode ser apanhado pela tristeza.
Saiu apressado à procura de uma tabacaria.
Licínia Quitério
21 comentários:
...e da solidão.
"com surpresa, viu uns fiozinhos líquidos a correrem dos olhos e a esconderem-se nas barbas.".
também fiquei com um fiozinho ao ler...
O teu poema/palavra
A tua palavra/poema...há um fundo humano, líquido, tão belo! Bjinho
Tem dia que passa sem deixar “aquela” marca, aquela lembrança que realmente valha a pena ser guardada. Tem dia que traz consigo aquele algo de especial, que fazemos questão de guardar.
... O post de hoje, Licínia, forte, belo, dorido: pra se ler, reler... como algo muito especial que o é.
Divino!
Sente-se cada letra que aqui desenhaste!
Beijinho:)
Aqui encontrei Hemingay e Neruda..
e todos aqueles que são felizes porque lhes acenam com um lenço de despedida...
"Guardou no bolso a aspereza do dia" Ah, se fosse possivel!Aí a gente mandaria fazer bolsos enormes para a guardar lá toda...
Bem captado o sentimento de solidão
Bjs
António
Sobre o poema e o texto quanta metalinguagem!
Minha cara Licínia... Por tudo e mais alguma coisa, não podes tu saber a que me soube este teu texto, pois não posso eu dizê-lo se nem há como o explicar. É do momento, da estação, da vida que corre, do dia de ontem, de tudo o que segue e a água varre, e do que fica e do que, e do que mais.
Belo poema, bela ligação de um ponto cinza-moribundo para um raio de sol de vida!
Um abraço invernoso mas risonho.
PS - Se não te importares, citar-te-ei numa resposta a um comentário (se bem que o que escreves seja sempre de primeira página).
Muito belo, Licínia!
Qualquer dos personagens desenhados, e com que rigor, não são caos desesperados. Provavelmente estão num momento de alguma fragilidade mas longe de uma solidão veemente e inexoravel.
Talvez perante pequenos percalços.
:)
... e encontrou-a no fim da rua. Pediu um maço de tabaco, pagou e encaminhou-se para a saida da loja mas algo o fez voltar novamente ao balcão. «Sou novo aqui no bairro. Por acaso sabe onde mora um sujeito chamado Rui? Disseram-me que vivia próximo... » O homem mediu-o de alto a baixo e retorquiu «Ó meu amigo! com esse nome, tenho pelo menos cinco clientes. Se não me der mais detalhes sobre a pessoa... » Percebeu que o outro não lhe daria a informação pretendida assim dum pé para a mão. Mas era um assunto de "vida ou de morte" -assim o catalogava. E por isso insistiu «O Rui que eu procuro é um dramaturgo. Está neste momento a escrever uma peça, por acaso tive acesso aos primeiros actos e acho que me encaixo perfeitamente no papel de uma das personagens. Assim, preciso de falar com ele urgentemente para... ». O do balcão não o deixou acabar «Já me podia ter dito isso! Agora estou a reconhecê-lo! você é aquele actor que representa o tipo que vive só no "Do Desencanto", da Licínia Q. e que estreou no dia 24!! Ó Amália! anda cá que temos aqui um artista... sabe que a minha mulher é maluca por autógrafos... »
Quanta beleza, Licínia! Uma beleza algo dolorosa. Um daqueles textos que ficam a pairar dentro de nós e despertam esses fiozinhos líquidos... **
belíssimo!
Beijinhos
Amália chegou e o homem corou. Não estava na sua natureza o reconhecimento publico. Ele era mais dado a egos magoados e desencantos vários.
O que o trazia ali era a vontade de ser personagem, mas uma secundária, daquelas que passam despercebidas numa peça sem nexo.
Agora, sendo alvo de atenção, só queria embrulhar-se em Papel de Fantasia e ser confundido com uma prenda de Natal.
Uma boa semana amiga:)
Lícinia, vai ao girassol comer uma fatia de bolo...
Há festa!
Bjs
Excelente texto, muito bem escrito. Parabéns. Phylos
Como entendo estas palavras... tenho eu tenho os cigarros por companhia, embora ironicamente fume mais quando estou acompanhada, mas são uns magnificos textos.
Bjs
TD
Licínia,
Perde-se a gente na tua escrita. Perde-se de vontade de se deixar ir e perder cada vez mais longe e mais fundo, no que se julga sentir como o reflexo da tua alma.
Gosto dos teus poemas, como sabes, mas é principalmente na prosa azul dos teus posts que me envolvo, me entrego e me perco, nos meandros das palavras, nas veredas das imagens, no imaginário dos ziguezagues do teu caminho.
Um beijo.
Um texto de uma sensibilidade enternecedora! Adorei.
Grata por o partilhares.
Um abraço carinhoso ;
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