Muros, vendas, avisos, feridas por sarar, choros de estrelas moribundas, ondas, memórias de mar, metais ferventes, trilhos de lava, que quereis de mim? Que tenha medo do oriente? Nada sabeis dos meus domínios. No meu peito há uma rosa de ventos a girar, a girar. Na minha voz um som antigo a ecoar. Que venham muros, vendas, avisos! Vós não cabeis nas minha mãos tão nuas. Trilhos de lava, esperai meu despertar.
Pequena, franzina, uma modesta página por escrever, diriam. Muitas estações percorridas, impressas na pele, nos cabelos. O corpo a fingir agilidade, traído por breves estremecimentos, como se memórias de vento o agitassem. O sorriso persistente, em desafios de alegria. Preparada para a luta, gostava de pensar. Assim enganava os pesadelos. Os óculos escuros, quase sempre. Os olhos eram o seu maior obstáculo. Macerados, mas teimando em denunciar brilhos profundos. Ainda não queria ser ilha. Península, sim. Estreita, cada vez mais estreita, a ligação ao continente. Quando decidia visitá-lo, transfigurava-se, com uma força de leoa jovem. Dizia, depois, cansada, mas contente: mais um muro derrubado. Era essa a sua maneira de contar os dias. Desde que o calendário enlouquecera.
Tudo o que vivêramos um dia fundiu-se com o que estava a ser vivido. Não na memória mas no puro espaço dos cinco sentidos. Havíamos estado no mundo, raso um campo vazio de tojo seco.
Depois, alguém urbanizou o vazio, e havia casas e habitantes sobre o tojo. E eu, que estivera sempre presente, vi a dupla configuração de um campo, ou a sós em silêncio ou narrando esse meu ver.
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
Como José Gomes Ferreira dizia dos pássaros, eu quero dizer que os POETAS quando morrem caem no céu. Seja ele o que for ou nada seja. É esse agora o lugar que me acolhe quando leio FIAMA.
O dia há-de chegar, com a capa de vento a ondular e cabelos de sol a clarear o côncavo das grutas.
Nas mãos, o riso dos meninos e o canto dos pássaros. Sempre os pássaros, com seus presságios álacres ou soturnos.
Estarei na minha torre, a entrançar desejos de tapetes de flores e de águas borbulhantes e de pássaros verdes. Sempre os pássaros. O dia há-de chegar, a embrulhar de azul o meu castelo, a invadir a torre, a incitar-me ao salto, a colar-me nos olhos a leveza dos pássaros. Sempre os pássaros.
Irei.
Desde sempre os conhecemos. Em bandos ou solitários, nos campos, nas praias, nas cidades, os pássaros lá estão. Espiam-nos, chamam-nos, provocam-nos. Às vezes rasam-nos o corpo, sem se deixarem tocar. Cantam para nos acordar, gritam à procura do asilo nocturno ou aparecem de noite a piar tristezas. Louvam a vida e pressentem a morte. Habitam os troncos das árvores ou as moitas rasteiras ou as fragas nas alturas. Mergulham até ao peixe ou debicam as searas. Sabem tudo do vento e das tempestades. Livres, livres. Tão alto subindo, tão alto, são a nossa inveja, a medida da nossa pequenez. Nunca os poetas os ignoram. Ilustram-lhes os versos ou são os próprios versos. Quem pode imaginar um mundo sem os pássaros?
como uma pena deixas a ave-mãe e oblíqua voas por vezes hesitante por vezes saudosa
vejo-te arrepiada mas não fria ainda não cansada não dorida mas ao sabor dos ventos dominantes fazes-me pena agora apenas pena à espera de repouso numa ave que te embale sem nada perguntar
Penas como tu assim perdidas escondem as falas na dobra do olhar
Desejos de partir. Quem os não tem? Deixar a moleza do berço, dizer adeus à casa, guardar na trouxa o respirar das ervas do quintal, a cantata de vozes amigas, uma mão-cheia de luz da janela do quarto e nada mais. Fazer-se vaga-mundo. Declarar, pela primeira vez, como gosto de ti, minha Senhora Vida. Seguir, subir, subir. E sorrir, sorrir muito. Sentir o corpo igual à terra e ao ar. Esquecer que há ganhar e perder. Poucos o fazem. Medo de regressar. De não achar a aldeia. De nunca mais as suas falas serem percebidas. Guardarão no coração para sempre a pena de terem ficado. Por medo de outras penas.
dizer o teu olhar assim como quem diz o tamanho da nuvem ou o peso do vento ou o contorno breve da alegria
as tuas mãos como falar dos peixes em lagos de frescura ou dos arados na quentura dos dias
a tua voz a cantar no silêncio das cordas do violino antes do arco
dizer-te na lonjura inteiro nos meus passos como se fosses música como se fosses luz como se fosses força como se sempre fosses
Piegas, como já não se usa. Acocorada, a fotografar um pequeno lago de jardim há muito necessitado de limpeza. Explicou:
é a Vida. pequenos frutos selvagens que ninguém quis comer. folhas cansadas das árvores. seixos atirados por crianças marotas. musgos. larvas. um fervilhar dos fundos a explodir à tona. águas antigas, sábias. já aqui nadaram peixes vermelhos. se pudesse, guardava tudo isto num livro que foi meu.
E riu-se. Parecia contente. Aquela cabeça! Não acaba bem, não.
Venho de longe de terras pobres caseadas de portas com trincos de madeira Trago nos olhos os microcosmos das brasas das fogueiras
Nos cabelos os cheiros da queima das ervas a esconjurar maleitas
No longe havia gente que atirava palavras à dor e à alegria e aos bichos tresmalhados
Para trás ficaram as fontes e a sede dos cântaros e a evidência da Cassiopeia e o bailado dos vaga-lumes Venho guiada pelo murmúrio de raízes subaquáticas Perdi o mapa das viagens e desprezo regressos
Aqui cheguei para conjugar o verbo no tempo dos meus passos
Percorres-te. E vais abrindo sulcos até chegares ao ponto em que te vejas. Tropeçarás em músculos, nervos e artérias onde pulsa o vermelho. Continuarás sem pressas e pensarás como cidade velha que rompeu as muralhas. Quem te habitou? Quem te viveu? Quem de ti emigrou? De tanto caminhares na inclinação do corpo, mesmo encostado ao osso te hás-de achar. Muito sereno, sem nada te doer, esquecido das espadas, enfim dirás: Prazer em conhecer-te. Contigo vou ficar.