31.1.07

MUROS


Muros, vendas, avisos,
feridas por sarar,
choros de estrelas moribundas,
ondas, memórias de mar,
metais ferventes,
trilhos de lava,
que quereis de mim?
Que tenha medo do oriente?
Nada sabeis dos meus domínios.
No meu peito há uma rosa de ventos
a girar, a girar.
Na minha voz um som antigo
a ecoar.
Que venham muros, vendas, avisos!
Vós não cabeis
nas minha mãos tão nuas.
Trilhos de lava,
esperai meu despertar.


Pequena, franzina, uma modesta página por escrever, diriam. Muitas estações percorridas, impressas na pele, nos cabelos. O corpo a fingir agilidade, traído por breves estremecimentos, como se memórias de vento o agitassem. O sorriso persistente, em desafios de alegria. Preparada para a luta, gostava de pensar. Assim enganava os pesadelos. Os óculos escuros, quase sempre. Os olhos eram o seu maior obstáculo. Macerados, mas teimando em denunciar brilhos profundos. Ainda não queria ser ilha. Península, sim. Estreita, cada vez mais estreita, a ligação ao continente. Quando decidia visitá-lo, transfigurava-se, com uma força de leoa jovem. Dizia, depois, cansada, mas contente: mais um muro derrubado. Era essa a sua maneira de contar os dias. Desde que o calendário enlouquecera.

Licínia Quitério

20 comentários:

Alberto Oliveira disse...

Cara Licínia:

Os muros, ah! os muros. Foi num muro que inscrevi a minha mais inflamada declaração de amor. Ela era morena e tinha uns olhos castanhos que... bom, não vem ao caso enunciar aqui, em pormenor, os predicados da jovem, sei lá até se tem um blog e depois era uma confusão das antigas com ela a invocar o direito à privacidade e outras coisas tais. E sabes que se há coisa que não goste é a de me meter em assados dessa natureza e imagina o que é de ter de arranjar um daqueles advogados da moda, indicarem-me um nome e só mais tarde, depois do caso vir para a blogsfera, perceber que o homem de leis era um daqueles do caso Casa Pia. Estás a adivinhar a minha cara, não estás? com títulos dos posts do género "Legível é ganso ou tanso?", ou do Apito Dourado: "O apito do Legível não é audível", coisas assim para me darem cabo da imagem, percebes? Bom.Já me estava a perder em prejuízo da questão central... a da inscrição amorosa no muro. Que rezava assim: Dometilia, amute! e gosto muito de ti e delas!!. Eu ia fazer cinco anos e ela tinha quatro... irmãs. As doidices que uma pessoa fazia naqueles tempos...

Um abraço amigo do

Alberto Legível.

Maria P. disse...

Sabes o que fazem os muros?
Abraçam os espaços.

Beijinho amiga.

Páginas Soltas disse...

Adorei o teu poema!

Sublime!

Volatrei com mais tempo!

Tomei a liberdade de colocar o teu links no meu Blog...se hover problemas...eu retiro!

Beijo da
Maria

Cusco disse...

Confesso-me um grande apreciador de prosa, boa prosa e um mediano apreciador de poesia. Confesso que aqui a perfeita ligação entre o dois fazem-me apreciar na mesma escala os dois formatos e gostar dos dois na mesma proporção. E isso raramente, muito raramente consigo encontrar...excepto aqui.
Até breve
SE DEUS QUISER

Rui disse...

Barbosa do Bonfim, atracou o barco a remos no pontão do istmo sem dificuldade. Era dia de marés calmas, sem corrente que se sentisse.
Puxou para terra o objecto amarelo e o que pareceu serem umas mangueiras. Demorou uns minutos a estabelecer ligações simples e quase uma hora a pensar na pena que tinha de as relações pessoais serem das complicadas. Por fim, já com a cabeça a doer-lhe, voltou à embarcação. Com movimentos rápidos, puxou por uma corda várias vezes até conseguir por a coisa a andar. Era um gerador, a que depois ligou o objecto amarelo.
Barbosa do Bonfim, aproximou-se do muro e coçou a cabeça. Esta juventude está perdida. Tão novos e já só pensam em fazer o amor., pensou. Depois ligou o compressor e apontou a mangueira à frase. Premiu o gatilho e um jacto de solvente acertou no D da Dometilia. Em poucos minutos ia ter aquele graffiti apagado.

Licínia Quitério disse...

ALBERTO E RUI,

No muro ainda se lê, com alguma dificuldade, claro:

"tília, gosto muito de ti"
e, muito recentemente, alguém assinou o deslavado graffiti:

http//: eutilia_nositio.blogspot.com

As voltas que o muro dá!!!

Beijinhos para os dois.

jorge esteves disse...

Sobressai-me o desejo da ilha preso a um sonho de península. Há sempre, de uma forma ou de outra, ora algo de umbilical ora algo de bengala...
No prazer destas leituras,
Afectuosamente

M. disse...

Adorei esse azul feito de palavras.
Um beijo.

Maria Carvalhosa disse...

Querida Licínia,

Tu tens, certamente, razão quando dizes que são as palavras que te escrevem e não o contrário.

É esse o verdadeiro conceito romântico da criação artística: a inspiração que brota algures do íntimo de alguém e o leva a criar uma obra de arte, não só sem a sua intervenção racional directa como à sua revelia.

Na tua escrita parece reencontrar-se este ideal defendido pelos artistos românticos: a arte e a razão raramente se encontram e, quando se encontram, o que surge é, sem desvalorizar a mesma, qualquer coisa diferente de uma obra de arte.

Beijos, Artista.

bettips disse...

Como adivinhas? Onde o conhecimento? Península, istmo já frágil, contudo memórias. Lava polida pelo ritmo da água. Bjinho

Anónimo disse...

Há o realissmo fantástico na prosa e também aqui nestes dois poemas (pois não consigo distinguir poesia de prosa na tua escrita) ele se revela com grande mestria
Um beijo

isabel mendes ferreira disse...

abençoado trilho este!!!!!!!!!!!






fico aqui.




obrigada.






beijo.

Anónimo disse...

nenhum muro é tão alto que me impeça de vir aqui ler a licínia e os seus gentis comentadores (legível e rui). boa noite e um beijinho. bom fim de semana ;)*

Páginas Soltas disse...

Vim fazer a minha " ronda" ao teu belo "espaço"...

Fiquei encantada, quando leio poemas e prosas de mão dadas..entrelaçadas!

Lindo mesmo!

Bom fim de semana e Beijinhos da

Maria

Diafragma disse...

Impressionante a tua escrita. Seja qual for o formato.

ps: adoro fotografias de muros, portas e janelas batidas pelo Tempo, aquilo a que às vezes chamo de Entropia. A textura e a cor da fotografia estão fabulosas.

batista filho disse...

“... desde que o calendário enlouquecera”, invertera os dias:
o sol se escondia na alvorada, despertando ao anoitecer
... enquanto a lua brilhava ao meio-dia, num convite ao sonhar.

pra melhor ver ao longe, a pequena fechava os olhos
escrevendo com dedos de luar as manhãs que anoiteciam
“... desde que o calendário enlouquecera”, era assim que ela escrevia.

nesse mundo enlouquecido de poesia e música
a humanidade finalmente se tornara lúcida.

Uma beijoca, amiga.

JPD disse...

Acho est post magnífico.

Para simplificar excessivamente, há quem diga que face a um muro há três atitudes possíveis: contorná-lo, pulá-lo ou desistir e voltar para trás.

Tu fizeste uma belíssima abordagem e converteste-a em valor estético.
Óptimo!

Não quero falhar, mas terá sido o Rui Nunes quem editou um livro recentemente com um título admirável «É NO OLHAR QUE SE SENTE A DISTÂNCIA» (Se não for assim, mil perdões)

Fica bem
:)

Manuel Veiga disse...

os teus textos são um "continente" de onde se emerge retemperado. excelente poema. mas desta vez a minha preferência vai para o texto que o acompanha.

confesso que tinha saudades de ler-te.

vida de vidro disse...

E tecemos terra, construimos pontes, destruimos muros. Para não ser ilha.
O que eu gosto de vir aqui! **

Isamar disse...

Gostei do poema e do texto em prosa que o acompanha.Nos muros se escrevem belas páginas de amor. Sejam elas em poesia ou em prosa.
Beijinhos

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