Gosto de me sentar em banquinhos de pau,
com cheiro adocicado de fumeiros.
Gosto do choro do salgueiro
batido pelo vento.
Gosto dos cães que não nos obedecem
que para tal nos bastam os seus donos.
Gosto de rebuçados de cinema
e de os desembrulhar na escuridão.
Gosto de olhar as montras
porque tudo o que mostram já me sobra.
Gosto da rouquidão da voz do adolescente,
a anunciar o eclodir do macho.
Gosto do Che mitificado no seu esquife,
como um Cristo de novo assassinado.
Gosto de receber saudades por herança.
Gosto do gosto da hortelã
antes de a ter na boca.
Gosto das pernas da Marlene a preto e branco,
em contraponto aos gritos do Tarzan.
Gosto do azul do céu, do azul do mar ,
mesmo sem mar nem céu;
azul, só de sonhar.
Gosto de tantas coisas, meu Amor,
mas do que eu gosto mesmo é de gostar.
Licínia Quitério, "Da Memória dos Sentidos"
Dizia amiúde coisas estranhas. Fora do contexto das conversas em que a julgavam presente. Faziam-lhe perguntas incómodas: Sabes que o Fulano deixou a mulher? Não, não sabia. Nem sabia sequer quem era Fulano. Porque esperavam que tivesse algo para dizer, arriscou: Como ficaram os olhos dela? As mãos dele agora estão vazias? Gostaria de saber. Mas ninguém tinha as respostas. Continuaram: Parece que arranjou outra. Exclamou: Oxalá gostem do mesmo mar. É tão importante para viajarem num barco de dois lugares. Dizia coisas francamente esquisitas.
Também os gostos dela eram bizarros. Chapéus com fitas coloridas, terras vermelhas, jogos de palavras, casa velhas. E já ninguém a podia ouvir afirmar, em ladainha: Gosto tanto! Nem valia a pena perguntar-lhe: De quê? Era sempre o mesmo. Subia ligeiramente os ombros, apertava as mãos e sorria com os olhos húmidos. Alguém um dia comentou: Parece que saíu dum quadro de Renoir. Ela não deve ter ouvido, senão teria sussurrado, com aquela voz sedosa e distante: Gooosto.
Licínia Quitério
30 comentários:
Bom dia!
É um gosto que gosto de me dar.
Lê-la pela manhã.
Bem haja por isso.
um abraço.
Maria Santos
Sempre que posso visito este espaço e saio sempre com um calorzinho no peito com aquele agrado que nos faz sorrir sem se saber bem porquê. Também gosto
Ó Licínia, este dueto é tão, tão bonito!
Já te disse como estas tuas palavras são bonitas? :-) Sorte a minha de saber ler!
Olá licínia,
Gostei do poema, adorei o texto, na verdade, ainda por lá ando de palavra em palavra, encantado na busca dos sentidos.
Beijos
Nem sei de quais gosto mais. Se das castanhas se das azuis.
E não gostas de gatos? que pena... rss
A serio: gosta-se de gostar e ama-se o amor, tantas vezes...
Gostei muito. Beijos
Juro que é a primeira vez que venho a este teu novo post e quando leio o título "BUM!" caio para o lado. Água fresca na cara, reviram-me os olhos e cento e doze que é uma pressa. Hospital com o cenário do costume, batas brancas, gritos para aqui, macas para acolá, oxigénio, cheiro a éter, sangue q.b. bisturis, quero falar e não posso e quando finalmente articulo as palavras do Abrunhosa "Socorro! Estou apavorado... !" o médico pergunta-me se me lembro do que me aconteceu. Que sim, respondo-lhe, vi o título dum post que era "metade do título do meu". E o seu como era?, voltou o clínico à carga. Que era "GOSTO DE GOSTAR", respondi angustiado. "Ó Enfermeira Teresa! Trate da transferência deste gajo para o Júlio de Matos a ver se ele GOSTA da camisa que lhe vão oferecer à chegada. Vá lá gozar o Camões!"
Coincidências virtuais.
beijos.
... ah! lá me esquecia! é um gosto ler-te. Mas isso já tu sabes.
É do gosto das tua palavras que eu gosto!
Beijinho Amiga*
Licínia,
“Cada um de nós se define para sempre, num único instante de sua vida - instante esse em que cada qual se encontra para sempre consigo mesmo”. (Jorge Luís Borges)
Será?
Acho que somos mais que isso, e você com essas maravilhosas palavras acaba de me mostrar isso...
Somos múltiplos, apenas algumas coisas ficam, outras mudam, voltam, outras se vão para sempre...
Enfim, gostei de suas palavras.
Bjs
Hay
eu gosto de si. e vou procurar o livro por aí. e ler à tardinha. beijinhos. alice.
E não é isso que é bom? Gostar até de coisas que ninguém gosta, saboreá-las, como se tivessem mesmo "gosto"...
Eu gooosto de te ler. **
mas que gostos tão tentadores!...
enfim, com uma pontinha de perversidade, dir-se-ia, pois isso "das pernas da Marlene a preto e branco" traz água no bico... rss
excelente.
Gostar, Gostar, GOSTAR!
Tirar dessa capacidade o máximo prazer e felicidade é extraordinário.
Belo post.
Bjs
"Gosto de gostar". Ora aí está uma coisa que muita gente que diz que gosta não sabe verdadiramente fazer.
Gostar das coisas simples, de uma flor de um gesto, de um gato que roça pelas nossas pernas, de um pardalito que debica no peitoril da janela, coisa que tu demonstras gostar e tão bem o dizes.
E a foto? de que planeta é esta paisagem?
Obrigado pelas palavras solidárias que deixate no meu blogue. Pus lá hoje mais dois sonetos
Um beijinho
juntas uma letrinha daqui, apanha outra dacolá... esticas a mão e apanhas uma palavra que quase te escapa! "essa foi por pouco..." - o telefone toca, o vizinho te chama... as palavras não esperam... se fogem de novo: que trabalheira reagrupá-las! poesia e prosa? ih, num dá de juntar. cada uma na sua. água e óleo... ué, sabia disso não! é mesmo? tá escrito num manual?... ou então... é como se as palavras desde o início tivessem ouvido direitinho o que te ia por dentro. só esperando a voz de comando... palavras esperando "voz de comando"? que doidura!
rss!
é sempre um grande prazer acompanhar o desenvolvimento das tuas idéias, Licínia. é um incentivo pra todos nós. de coração. sabes disso.
uma beijoca, amiga.
Às vezes, as palavras trazem presas a si sussurros dos olhos que as criaram. E isso torna as palavras cheias. Como estas, por aqui...
Abraços, amiga!
(esqueci-me: não, não sou 'de la Mancha', pese embora, estrada fora, ter achado alguns moinhos...)
abraços, amiga!
E eu gostei imenso de aqui vir ler este poema e prosa, de gostos tratando.
Beijinhos
e eu gosto de me sentar aqui. a ler o Sítio das palavras que formam Poemas. de sempre em sempre.
beijo.
Quase tenho vergonha de não ter um comentário muito bonito, muito elaborado para deixar. Porém já disseram quase tudo e por isso deixo-te um beijinho e uma quadra de um poeta popular que de certeza deves conhecer:
"Gosto de apertar a mão
Áspera dos calos que tem
Também as ´côdeas de pão
São ásperas mas sabem bem"
(a.aleixo)
Até breve
SE DEUS QUISER
muito obrigada, licínia. foi muito simpática comigo. foi sempre ;)* beijinho muito grande e até breve.
Gostei. Mesmo. Boa noite.
Aposto que era a rapariga do regador. Tinha voltado para dar de beber às flores.
Que beleza de texto, Licínia, quanta poesia!!!
Também eu gosto de tantas coisas de que a minha Amiga também gosta; e ainda antes de as saborear ou cheirar ou sentir...
Obrigada!
Fez-me feliz!!!
Um beijo enoooooorme da
Maria Mamede
Por esse gostar nos perdemos, por esse gostar nos achamos. Tão bonito, uma melodia que se "ouve". Bjinho
A vida é só uma…breve ou longa, é uma incógnita!
Na minha imagem mostro uma espécie de relógio que significa o «tempo», e ele é muito importante em todas as vidas. Perseguir e alcançar a felicidade é o sonho humano mais desejado, pois todos temos direito a um quinhão de felicidade. Partilha comigo esta busca, perseguindo também a Felicidade.
Lamento não poder visitar este lindo espaço - blog durante a semana, mas, a promessa de cá vir ao fim de semana mantenho-a.
Beijokas.
ADORO LER-TE. Parabéns.
Gostar de gostar, é bonito de dizer e tão verdadeiro... É o que nos faz sentir vivos.
Beijos
Um grande prazer ler-te !
Cada vez tenho mais saudades dos teus escritos futuros.
Abraço
_______ JRMarto
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