2.3.07

ESPELHOS


Persigo há muito a senda dos espelhos.
A intrigante e abismal distância
onde tudo descansa. Reinos virtuais
de nevoeiros e acordes improváveis.

Os espelhos não dormem. São atentos
ao nascimento e à morte de imortais.
Intacta guardam a memória dos que
na sua transparência se colaram.

Quem dera ao entardecer os penetrasse
o frio diamante do meu peito

e os incontáveis braços das ausências,
comovidos, rendidos,
me pegassem.


Vaidosa. Não podia passar por um espelho sem nele se mirar. Não, não compunha o cabelo, não retocava a pintura. Nada desses gestos vulgares de fêmea em sedução. Olhava-se e começava a falar baixinho. Afastava-se e acenava leve, levemente. Depois, aproximava-se mais, mais. Até tocar a superfície fria, com as mãos, com a ponta do nariz. A tentar sobrepor-se à imagem. No espelho começava a opacidade de um círculo que lhe saía da boca e lhe tomava conta de parte do rosto. Nas palmas das mãos, a lâmina polida amornava. Um toque suave de um encontro esperado. Olhos bem abertos, quase dentro dos outros, dos iguais, do outro lado. Onde?
Ele um dia perguntou-lhe: Que procuras? Apanhada de surpresa, afastou-se, compôs a figura e disse: Nada. Jura que ouviu a outra, também a afastar-se, dizer: Tudo.
Vaidosa?

Licínia Quitério

28 comentários:

M. disse...

Fabuloso!

M. disse...

Por graça fui buscar um texto antigo que também fala de espelhos e publiquei-o no Fotoescrita...

Diafragma disse...

Sensacional!

Anónimo disse...

boa noite, licínia ao espelho. a pergunta é a mais bonita? a fácil resposta é a menina. beijinho de sol e chuva. apetece-me assim ;)*

Manuel Veiga disse...

os espelhos roubam a alma, dizem-me. mas o teu poema alimenta-a...

brilhante...

esse disse...

Não há melhor amigo do que um espelho, acreditem!

Beijinho

Anónimo disse...

querida licínia. se gostar. e se quiser. e se lhe apetecer. e se não se importar. gostava que aceitasse um desafio no meu blog. se não quiser. se não gostar. se não lhe apetecer. amigas na mesma. naturalmente. beijinhos. bom fds!

Flor de Tília disse...

Passar por aqui é sempre um prazer. Texto e poema em sintonia perfeita. De grande beleza. Sempre!
Um beijinho e um bom fim de semana.

PintoRibeiro disse...

Talvez não. Bom domingo, abraço.

Alberto Oliveira disse...

Não. Apenas atenta aos gestos repetidos, devolvidos pelo vidro espelhado. Sabendo embora que a outra era ela própria, gostava de jogar este jogo onde se punha à prova na procura de caminhos diversos de representação de uma personagem que não lhe permitia grandes rasgos artísticos. Olhou-se uma vez mais no espelho e disse-lhe: "Hoje vou brilhar ali fora, no palco. E tu ficas aqui sózinha que te lixas!" Ria-se desmesuradamente quando o director de cena a interpelou " O que faz aqui dona Mariana? já estou farto de lhe dizer que não a quero nos camarins dos artistas durante a representação. Não tem nada para limpar?!"

Teresa David disse...

Que magnifico texto e poema, e curiosamente também sempre um secreto fascinio por espelhos, pois sempre que vejo um questiono-me se as pessoas terão uma imagem igual áquela por mim vista quando para qualquer um olho.
Bjs
TD

jorge esteves disse...

Vaidosa? Não... Alice!
(uma fábula de concâvo e convexo)
Abraço!

Anónimo disse...

querida licínia. tenho enfim de me demorar aqui um pouco mais do que é habitual. sabe como foi especial a sua participação. pela intenção. pela genoridade. gostei tanto. nem imagina. fiquei comovida. estive a ler o que escreveu. e imaginei a sua vida desse lado do espelho. vi a sua gata... sabe, há coisas que não se explicam. sobretudo as mais bonitas. queria ter vindo antes. agradecer-lhe. já me visitou hoje. e eu já deveria ter vindo. mas fui apanhada na surpresa do que por lá aconteceu. tudo começou num meu comentário singelo. nunca pensei ser tão estimada. são estes gestos que me incentivam a continuar. e a minha estima também é sincera. eu só queria poder dar-lhe um grande abraço. foi muito querida. foi um anjo no meu caminho. nunca me hei-de esquecer de si. sabe uma coisa? todos os dias vou almoçar a casa dos meus pais. tem uma magnólia na entrada. tem florido imenso nos últimos dias. sempre que olho para ela penso em si. e agora chamo-lhe licínia... hei-de fotografá-la no meu blog. e será para si. muito obrigada! e um grande beijinho.

António Melenas disse...

Sábio discorrer sobre espelhos e jogos de espelhos numa linguagem poética sentida e em versos explendidamente construídos. Como sempre
Bjs

vida de vidro disse...

Será que os espelhos guardam mesmo a memória de quem neles se mira?
Do outro lado do espelho... o que estará? :)**

JPD disse...

Olá!

(Um espelho é útil por servir para ver objectos no espaço e sentimentos no corpo!)

O teu texto está excelente!
Bjs

(Visita o http://osuordabelha.blogspot.com)

Alves Bento Belisário disse...

"A bátega em desmaio
Ao chão. Um bulir...
Antes poesia que poeta."

Maria P. disse...

Vaidosa não, fantástica!

Beijinhos Amiga*

Rui disse...

Curiosa, gostava de perceber (compreender?) quem a interpelava. Queria conhecer quem era a detentora das interrogações, das dúvidas e dos desafios. Quem se escondia atrás da superfície fria, mas dentro do calor de si.

Maria Carvalhosa disse...

Querida Licínia,

O eterno mistério da imagem reflectida e a secreta esperança de que o que espelho nos devolve não seja só uma imagem... a vaidade de narciso transposta para cada um de nós, quando se vê ao espelho. Não é necessariamente a cópia de uma figura bonita que buscamos. Acima de tudo, quando nos olhamos ao espelho, esperamos ver o retorno de uma alma apaziguada e feliz.

Um beijo.

Cusco disse...

Li algures, num livro algures, que só somos homens quando olhando no espelho começamos a ver a imagem do nosso pai.
No teu texto, eu vi-me, eu vi-o no espelho e fiquei feliz.
Obrigado ao espelho, obrigado à Licínia.
Até breve
SE DEUS QUISER

o alquimista disse...

No sublime te li...esplendido poema vindo de uma enorme alma...a tua...


Doce beijo

APC disse...

E quantas vezes somos apenas espelho para que outros se vejam belos?

E os incontáveis braços das ausências, comovidos, rendidos, nunca chegam.

Olhamos o espelho e não vimos nada. Mas é bem certo que a cada vez que o olhamos procuramos tudo: o abraço da vida e(m) nós.

Excelente!!!

aquilária disse...

querida licínia: quem observava quem? sabes, os espelhos são perversos...

um abraço grande

Anónimo disse...

E que bem que faz um pouco de vaidade!!!

Lindíssimo e muito bem escrito esse teu texto...

bettips disse...

Lerda, tu? Tu, terna, sagaz, frugal. E pensamos a mesma flor ao mesmo tempo de Fevereiro. Que não se percam estas pedras preciosas,
que lhes chamar?
Esmeraldas... Bjinho

Vasco Pontes disse...

Olá licínia,
Vejo redondo, aqui, não falta nada. O poema bom em tudo (ia escrever dos melhores que fizeste, mas já escreveste tantos tão bons...)e a prosa ao mesmo nível. Falta o tempo para uma análise mais profunda como eu sei que gostas, mas olha, gostei da mudança de ritmo
Beijos

Paulo Ednilson disse...

numa face
do vidro
a vida
refletida
no pó
do nitrato
de prata

na outra
opaca

a face
nua
e crua

do nada

Paulo Ednilson

Que maravilha Licinia1!Escrevo (publico não sei quando) um livro de poemas e, sem nenhum narcisismo, também estou diante do espelho. Gostei muito do que li por aqui, o teus poemas não esperam para serem lidos eles invertem o processo, são eles quem lêem o leitor!

Beijão deste poeta!

Corumbá-MS Brasil

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