27.3.07

MEDOS



Um tempo houve em que as paredes não existiam.
Só as árvores nomeávamos.
Penso paredes e sinto-me cansada.
Escrevo árvores como se as tivesse inventado.
Pinto árvores nas paredes para as poder saltar.

De súbito, do outro lado,
um chicote de gritos:
Devoraram as árvores!!

Tenho pena.
Já não ouso escrever palavras
como estrelas, ou montanhas, ou liberdade,
nem pintar árvores para depois trepar.
Pode sempre haver, no avesso das paredes,
quem se divirta a devorá-las,
talvez porque afinal eu as tivesse inventado...

Assim, a partir de hoje,
apenas pensarei, sensatamente,
paredes,
altivas como montanhas a namorar estrelas,
macias e frementes como jovens árvores,
leves e saudáveis como o sabor da liberdade.

Até deixar de me cansar.

In "Da Memória dos Sentidos"


O meu Pai dizia: O medo não existe. E eu avançava pelo quarto escuro, devagar,os olhos muito abertos, a afastar as sombras dos ramos da nogueira. Mãos de lobo a tentarem agarrar os meus brinquedos. O medo não existe. E eu dava mais um passo,já muito perto da boneca que me chamava (eu ouvia) no tampo da mesinha à cabeceira. Finalmente tocava-a e de pronto a agarrava. Retrocedia, com passos estugados, em direcção à luz por momentos roubada. O coração batia e uma alegria nova me invadia. O meu Pai sabia tudo. O medo não existe.

Ainda hoje não tenho relutância em entrar no quarto escuro onde não há boneca nem sombras da nogueira. Apenas eu com o medo futuro.

Licínia Quitério

11 comentários:

António Melenas disse...

Pois é, Amiga
Há coisas que se não podem inventar e as árvores muito menos.
Então que tal de jornada poética
Espero que te tenhas divertido
Um beijo

jorge esteves disse...

Talvez (mas apenas um talvez ténue, tão subtil e delicado como pieria de cetins) seja essa a razão das paredes que não das árvores: a inconsistência daquele medo que dos galhos transportaram no Tempo...
Sempre rendadas, as palavras!
Abraços, amiga!

Bernardo Kolbl disse...

Um abraço.

agua_quente disse...

E assim dizemos todos os dias: o medo não existe. Para nos convencermos, para que o tempo possa avançar e continuemos a pintar árvores.
Beijos

Anónimo disse...

boa noite, licínia. quando eu não sabia escrever. e tinha medo. ia pondo as letras devagarinho uma ao lado da outra. o rabo do m a comer a boca do a. a perna do d a descer timidamente ao o. depois aprendi a escrever. e agora quando tenho medo. venho ao sítio do poema. e saio daqui crescida ;) beijinho muito grande cheio de saudades *

Maria P. disse...

Gostei muito.


Beijinho Amiga*

P.E.S. disse...

muito bom!

M. disse...

Muito belo, Licínia.
Beijo.

Alberto Oliveira disse...

assumo
o receio que tenho do medo
de recear o vermelho-sangue
como alguns pintam o nosso presente
e das cores cinzentas como futuram o nosso futuro.

em criança, nunca tive medo de olhar de frente o escuro. hoje, uso óculos.


beijinhos.

Manuel Veiga disse...

que posso dizer(-te)? que continuas a tentar murais em paredes enegrecidas? que esconjuras o medo trepando as mais altas árvores? que colhes sabores no avesso das palavras? que namoras estrelas no macieza dos cansaços?

adorei!

Carol Timm disse...

O medo cresce se não enfrentamos a situação que nos assusta. Na maioria das vezes o medo é que nos assusta. Tudo é tão pequeno depois que a gente conhece de perto. Os medos não são diferentes de todo o resto, também passam e também mudam.

Cheguei aqui através do amigo Hay e gostei muito do seu blog, dos seus escritos. Pena não poder escrever sempre.

Beijos,
Carol

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