4.9.07

ACONTECER


Aproveitando a nesga do silêncio,
sentamo-nos no prado verde-luz
e varremos o céu com olhos de água.
No entrelaçar dos dedos magoados,
aprisionamos desejos de regressos.
Ofertamos os ombros à neblina,
o gosto de gengibre pela boca.

Por vezes acontece um fim de tarde assim -
a sombra do salgueiro a afagar-nos a nuca,
o sono de menino a embalar-nos o colo.

Tão breve, tão breve este sangrar do dia.

Não foram aqueles parêntesis curvos a enquadrar-lhe os cantos da boca e dela se diria uma jovem mulher. Chegou sozinha, transportando na cintura o requebro de ladear os ventos. Era alguém sem pressa, já sem pressa, posso dizer. O andar encaminhou-a para a relva fresca. Um velho choupo ofereceu-lhe o tronco erecto, afirmativo do labor das seivas. Nele apoiou um ombro e logo a cabeça e logo o braço a procurar o quanto podia alcançar da impávida figura. Provavelmente, foi o tremeluzir das cores da tarde que lhe trouxe aquela estranha vertigem. Quem passou pressentiu um desacerto na mulher. À pergunta: Sente-se bem? respondeu baixinho, com um sorriso a acentuar a curva dos parêntesis: Sinto. Tenho uma flor no cabelo. Há tanto tempo não acontecia...

Licínia Quitério

21 comentários:

Chellot disse...

Suas palavras encantaram-me. Por vezes nem percebemos o que nos acontece e ficamos meio que ausentes ou enfraquecidos com tanta beleza.

Beijos de Sol e de Lua.

JPD disse...

Olá!

Gostei do poema e prefiro a prosa.
Qualyer deles excelentes.
Bjs

Mar Arável disse...

FORÇA NO INDIZÍVEL

Unknown disse...

Bonito, principalmente a prosa, que para mim é poesia.Gostei. Já não é a primeira vez que a leio.

Eduarso Aleixo

Era uma vez um Girassol disse...

Delicado, sublime...
Minha querida Licínia, espero que estejas também a concorrer para a" Caneta de Ouro"!!!
Vai ser renhido, com tanto talento na blogosfera.
Quanto ás saudades, minha querida, como amarfanhá-las, como fazê-las desaparecer? Já tentei...
Mas o chamamento é forte e quando arranjar companhia, vou!
O problema é que a maior parte das pessoas que lá estiveram não querem voltar...Outras não andam de avião..O pescador não está para aí virado...Ir sozinha não é seguro.
E a malvada saudade vai aumentando dia a dia...
Beijinhos

bettips disse...

Um frémito de uma pequena oferta do tempo, sensitiva. Com as tuas palavras, sentimo-lo como nosso. Bjinho

Graça Pires disse...

Olá, Licínia. Resulta muito bem a junção dos dois textos. Confesso que o segundo me emocionou bastante. Obrigada pelo momento. Um beijo.

~pi disse...

- sinto...

pralém da flor que vês

no meu cabelo há um morango

invisível

a escorrer

devagar

no lugar mais

térreo do peito



...



beijO :)

hfm disse...

Tão expressivamente belo!

M. disse...

Belíssimo, Licínia! Belíssimo! Comovente.

un dress disse...

pouco mais sobra

/ que a flor arrabata...





beijO

Rui disse...

Abraçada pela árvore - que, afinal, era isso que naquele relvado acontecia -, de sorriso rasgado, julgou ouvir um coração. O sorriso esmoreceu e o abraço fraquejou, na dúvida sobre outra presença. Olhou em redor, mas nada viu.
De novo abraçada pelo choupo, o mesmo ritmo a entrar-lhe sentidos a dentro. Um coração, sem dúvida. Apurou a intuição e fechou os olhos, encostada à árvore. Sim, um coração batia dentro ao álamo.
A felicidade que a tomou não a deixou perceber o pica-pau que, por cima da sua cabeça, acabava de levantar vôo.

Espaços abertos.. disse...

Texto muito exprerssivo e belo,um estimulante para um fim de tarde em Agosto.
Bjs Zita

aquilária disse...

ninguém viu mas, na tarde sem vento,sem a mais leve brisa,
logo depois da mulher ter proferido essas palavras, a sombra das folhas do choupo teve um estremecimento muito breve. dir-se-ia um suspiro de uma invisí­vel presença.

abraço, licí­nia

Alberto Oliveira disse...

Acontece
que o que nos é dado ver,
o nosso olhar esquece
ou tarda em perceber.

E é assim tão difícil
entender uma flor?



Pareceu-lhe então escutar ao longe "if you´re to San Francisco... "


beijinhos.

Fátima Santos disse...

:)

Anónimo disse...

*
buscou nas palavras o tom preciso
para o descompasso do coração
*
na tarde desmaiada
o brilho nos olhos a segurar o dia
*
repousou no seu colo
a sombra da árvore fatigada
*
a flor no cabelo floriu a árvore
que há muito desistira de florar
*
**
***
Licínia, em meio a uma trabalheira que parece não ter fim – tuas palavras, oásis de doçura... ladeado por outras tantas palavras d’alguns poetas que continuo a visitar, embora raramente deixe comentários.
Grato, de coração.
Um abraço fraterno.
batista (filho)

Vasco Pontes disse...

Olá irmã,
Belo texto, sim. Mas para o poeta é o poema que manda mais, que vem primeiro.
Beijos

Manuel Veiga disse...

... "tão breve,tão breve este sangrar do dia". carpe diem...

tão bela essa flor nos cabelos!

mafalda disse...

Querida Licínia,
É tão especial ler os teus poemas e as tuas "prosas a azul". Quanto mais te leio mais gosto de te ler. Sei que é um fenómeno generalizado, a avaliar pelo número de leitores assíduos que tens e que se sente ficarem, como eu, sempre suspensos das tuas palavras e à espera do próximo post.

Beijos, linda poeta, linda mulher.

APC disse...

Comovi-me muito com o texto. Tão bonito e triste e frágil, esse desejo de regresso perdido no tempo...

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