23.2.09

CLARISSE 5



Um homem-menino chegado da soleira de outro tempo abriu um sorriso nos olhos de Clarisse. Não se lembra do nome dele. Dirá que se chama Fernando. Tinha fome e tinha medo e levaram-no ao encontro de outras fomes, de outros medos. Era uma vez uma aldeia perdida, lá no fundo, passado que fosse o leito seco do ribeiro... Era? Clarisse no declive da serra, rodeada de canções de luta e sobressalto, levando nos braços a maior esperança do mundo. Fernando espantava os medos acariciando livros de ensinar a ler, os livros com que ele, Fernando, ensinaria a ler. Pelas serras fora, os ogres ateavam fogos e tocavam sinos a rebate, anunciando a chegada do anti-Cristo. Clarisse duvida agora se aquele foi tempo de desejo ou de passagem. Os álbuns não mentem, mas confundem. O sol do meio-dia era uma afronta nas paredes enrugadas e na magreza das couves. Histórias que talvez tenham contado a Clarisse ou, quem sabe, ela as tenha inventado quando à noitinha uma mulher lhe bateu à porta para ser ouvida. Mulher-desgraça, desacertada, pecadora de amores alheios, solteira e perdida e calada. Fernando era o rei dos meninos quando lhes lia histórias e os deixava tocar as capas grossas dos livros. Havia enxadas e forquilhas e ameaças de exorcismos. Ou não. Não pode saber quando isso acabou. Se acabou. Clarisse julga lembrar-se de ter falado, no luar, na rua. As pessoas iam chegando e ficavam e sentavam-se no chão. Um lobo uivou ali perto. Ninguém se importou. Os cães estavam sossegados, lambendo o pelo e as feridas. Que terá dito Clarisse? Por certo, as palavras necessárias que não sabia e já esqueceu. Os livros de Fernando a passarem de mão em mão, a fecharem a roda dos corpos no luar de todos. Que mais terá acontecido? Por onde andará em contra-luz aquele homem-menino? Que novas fomes terá sabido? Que histórias contará sobre o luar das noites que o fizeram rei das crianças, naquele Verão de fantasmas contra o tempo?

Clarisse há-de ter as respostas que moram noutros álbuns. Entretanto...


Licínia Quitério

15 comentários:

© Maria Manuel disse...

como alguém disse, parece estarmos a ler uma clarisse do outro lado do espelho, tal é a capacidade imaginativa e imagética testes textos, agora com personagens que enriquecem a história
fantástico!

Graça Pires disse...

Os álbuns de Clarisse são inesgotáveis. Bela, muito bela esta parte de um texto que se vem completando de forma mágica.
Um beijo Licínia.

Justine disse...

Tempo de encantamentos e de aprendizagem. Hoje de saudades..
E só a poesia pode exorcizar as saudades - ou reavivá-las?

Maria disse...

Passeio-me nas memórias de Clarisse. Como se minhas fossem. Em azul.

Um abraço

jorge esteves disse...

Há sortilégios e luas, sombras e neblinas, sobretudo silhuetas de leituras com vida...


abraços!

Alien8 disse...

Entretanto, fico à espera de mais.
Belíssimo texto, em tudo.
Boa semana!

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

estive a ler todos os textos.

todos são excelentes.

nao sei qual o melhor...

beijo para quem escreve assim!

Manuel Veiga disse...

... e Clarisse desabrochou Mulher na fome do Homem-menino. e caminhou histórias nos vultos dos caminhos. e passeou flores presas nos cabelos. e livros nas estrelas.

admirável. sempre

beijos

Arábica disse...

Licínia,


haverá foto mais perfeita

que a foto guardada no coração da

memória, onde o rei menino vive?

Obrigada pela partilha.

Um beijo

Mar Arável disse...

Aguardo as respostas da Clarisse

Este texto aguça

uma história

inesgotável

Sempre soberba a escrita

M. disse...

Soberbo!

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

Clarisse , a eterna buscadora deixa-nos pedaços de histórias , a medida que nos enche os olhos de perplexidades e anotações....
O prazer de um texto terreal
abraço

____________ JRMARTO

Alberto Oliveira disse...

... no quinto album de Clarisse estamos chegados a um tempo em que os meninos-homens traziam mensagens de esperança em forma de livros. É provável que Clarisse tenha inventado algumas das histórias que aqui hoje nos traz. Mas se o fez, deve ter sido na melhor das intenções: a de fazer luz num momento em que as histórias (ou a História?) por serem tão enegrecidas, dela careciam. É pelo menos esse, o meu entendimento. Mas que gostava da saber mais sobre esse menino-homem que também contava histórias, lá isso gostava...

beijos e óptimo fim de semana.

bettips disse...

Encantatório, Licínia. Não sei se quero que Clarisse feche o álbum...
Bjinho

M. disse...

"Onde andará aquele menino?", pergunta Clarisse.
Onde andará a Licínia?, terá ele perguntado ao longo dos anos.
As respostas virão. Para felicidade de ambos.

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