31.7.09

CLARISSE 13



Parece não pertencer ao álbum. Uma índia em chão de sol e areia. De pronto Clarisse a revisita, num fim de tarde ardente, frente ao pequeno rio de atrevimentos e inocências. A fragilidade dos barquinhos a remos, chape-chape no zumbido da tarde. O dorso prateado das tainhas brincalhonas, em saltos pelas tangentes dos rodopios concêntricos. Dizia: o mar está a entrar. Ou então: o rio está fechado. Aquele não era um rio de saída. Esperava a subida da maré e acolhia minúsculos camarões translúcidos. Ganhava ondas, pequeninas é certo, e saboreava o sal e os farrapos de algas cor de alface. Clarisse pensava: assim há-de ser o meu rio em tempo de maré alta. Inquietações renovadas, sabores exóticos, anúncios de outras paragens. Por agora, ficava assim, sentada, os braços rodeando os joelhos, os pés na areia quente e húmida, aguardando a chegada da sombra que o morro estendia no rio, a ensinar o poente, o recolhimento aos fundões do leito, o sono dos peixes sem pálpebras. Na esteira do olhar de Clarisse há uma jangada, rio acima, e um chapéu de palha vermelho que lá esqueceu na última travessia. Voltará, uma manhã, quando o primeiro sol soltar da pele do rio os véus do despertar. Clarisse dirá: o mar está a entrar. O Homem dirá: esperava que o dissesses. E só ela saberá da alegria no sorriso envergonhado do Homem que finge medir com uma vara a altura do sol.

Licínia Quitério

10 comentários:

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

Excelente , Excelente ...
Um prazer linha a linha .
Um abraço

_______ José

M. disse...

Belíssimo! Belíssimo! Belíssimo!
Lembraste-me a Sophia de Mello Breyner.
A fotografia... A personalidade que dela salta, forte. E que bela índia!

M. disse...

Esqueci-me de acrescentar: um poema de amor. Aliás direi que sempre na boca de Clarisse.

Lídia Borges disse...

Lindo de morrer!
Um texto de conteúdo muito tocante e pleno de poesia.
Como já é habitual, este cantinho enche-me a alma.

Obrigada.

Um beijo

João de Sousa Teixeira disse...

Qualquer dia também irei falar dos "meus" rios/memória.
Penso que estas memórias são comuns, a diferença é que uns partilham-nas e outros não.

As melhores saudações
João

bettips disse...

Olhar a poesia com a juventude nos olhos e nos cabelos. Uma beleza, ela e o poeta que a fadou para.
Revisitada, menina pela tua mão.
Bjinho

mariab disse...

pelas tuas palavras, é sempre um prazer reencontrar Clarisse. jovem, tão jovem... poeta já na contemplação do rio. é tão bom ler-te!
beijo

Arábica disse...

Ah Clarisse, India da meia praia no mar cheio, como gosto de te ler!
E mergulhar através das tuas palavras no tempo das tuas memórias!

A Clarisse cresce. :))


Um abraço

Graça Pires disse...

Tão belo, Licínia, que se fica sem palavras...
"Clarisse pensava: assim há-de ser o meu rio em tempo de maré alta."
Um beijo.

Manuel Veiga disse...

ah, como os Homens se perdem a "medir a altura do Sol!"...

... e como Clarisse é sábia a desfrutar o vaivém das marés!

belíssimo. sempre...

beijos

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