28.6.11

VOLTAR


Voltar. O que é voltar?
Nadar contra a corrente,
subir o rio, procurar
o lago antes do açude. 
Ler os sinais na morte das aranhas.  
Ser Alice na senda do coelho 
e tropeçar no fio do impossível.
Fechar os olhos até sentir
o recado do sol
numa folha de vidro.
Voltar ao infinito azul
embora seja branco
embora seja negro.
Ficar entre o corvo e o cisne.
Esperar eternamente
entre o cisne e o corvo.

Licínia Quitério  

21.6.11

VAMOS SUBIR




Vamos subir com as asas da manhã.
Sacudir o torpor da insónia e os fantasmas
nocturnos, repetentes, nas teias da memória.
É Verão, dizem, e acredito. Acredito
no pregão dos calendários, na vara de sombra
na parede da casa, na virgindade das areias.
Vamos, com a tenacidade dos peregrinos,
descobrir o adro dos encontros, dos abraços,
dos sorrisos, das danças de roda das mulheres,
das danças de roda dos homens, das danças
de roda dos filhos das mulheres e dos homens.
É Verão, eu sei, o dia é largo e as hienas
farejam as feridas e a fraqueza das crias.
Vamos devagar, com rasto de preguiça
nas sandálias leves. Atenção aos abutres
de olhar de pomba, nos seus poisos altos.
Longo, longo, o tapete de sol
que da nossa garganta se desdobra.
Continuemos, pois.

Licínia Quitério

     

15.6.11

DEVORAS-ME


Devoras-me, devoro-te. Há milénios.
Começámos ainda os dias se chamavam
sol ou lua, e as palavras eram outras,
mais curtas, mais sonoras, e nas vozes
se faziam estalos de chicote ou o gorgolejar
de líquidos à boca das ânforas.
A palmeira devora o deserto. Devoram-se.
Antes da areia, quando as tâmaras
eram só o mel das tâmaras.
O leão devora. Os leões devoram-se.
Desde o dia em que as mães esconderam
os filhos no coração das grutas.
Céu e mar devoram-se. Mar e céu
regurgitam-se, ritmados.
Voam os peixes e os pássaros mergulham.
Porque te amo, devoro-te.
Há milénios és a areia, a água,
a nuvem, o leão, o mel. Devoras-me.
Sou um fruto maduro na curva da idade.
Decifrei o segredo da Estrela Polar.

Licínia Quitério

8.6.11

TEM DE HAVER UM POEMA



Tem de haver um poema numa pedra de sol,
numa gota de sal, num riacho a florir.
Bem por dentro do vento, há-de estar uma pluma.
Abre a mão e verás uma ave do sul a piar, a piar.
É um espinho, um soluço, uma seta, um trovão?
Um passado, um caminho, uma luz, um porvir.
Música tem de ser o crocitar do corvo,
o choro dos escravos, a saudade, a saudade.
O rosto da infâmia, as mãos da crueldade,
o dorso da inveja, o ventre suicidado.
É urgente o instante de agarrar o poema,
desvendar a palavra, vesti-la, devorá-la,
fazer com ela amor.
Esperar a chuva e a serenata, a tília e o luar.
O inominado, o inacabado, o imperfeito,
a vida.

Licínia Quitério

1.6.11

UM ESBOÇO


Um esboço, uma pegada, um trilho.
Escada de corda das nossas emoções,
bamboleante vertigem do nosso atrevimento.
Assim se abrem os dias de subir as ruas,
de cumprir as tarefas maiores que as nossas mãos,
de aceitar as árvores cortadas,
os olhos dos velhos, aguados, 
a raiva dos despojados,
o silêncio dos culpados,
o ranger dos ossos.
Há ainda um pássaro sobrante
no susto da falésia e notícias
de ramos coloridos nas auroras de gelo.
Um passo e outro passo,  
o coração no vento, uma voz alheia na garganta.
A escalada da rua, a construção do dia,
a sagração da vida.
Tudo, ainda.

Licínia Quitério

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