Caminha lesto o vagabundo,
à procura da origem de seus males.
Acossado pelos lobos,
ignorado pelos reis.
Tem encontro marcado,
anunciado pelo bater do próprio coração.
Os olhos navegam pelas pedras
que sabe serem estrelas.
Por vezes pega numa e a afaga.
Guarda-a no bolso com cuidado
e o casacão se curva desabado.
Vem do sítio dos loucos deserdados,
com montanhas de jade e de ternuras.
Pela boca falam vozes comandantes:
Agora vai, agora ama, agora mata.
Só não pode parar o vagabundo.
A urgência de chegar não o permite.
As mãos morenas afastam sombras
- intrusos a impedir o progresso
do corpo já cansado.
Se desatento, tropeça num coral, numa romã,
demónios mascarados de natura.
Mas logo se endireita e continua.
Quando parar, será de sopetão.
As vozes deixarão de o incitar,
as estrelas no casaco o brilho perderão.
E lenta, lentamente, seu corpo vergará
até ao chão.
Pela primeira vez, verá os muros do castelo.
Ilusão ou verdade? Não lhe interessa.
Já não pobre, não louco. Apenas corpo.
Até que os reis e os lobos apareçam.
São vagabundos? São andarilhos? São loucos? Vemo-los por aí. De noite ou de dia. Não têm idade. Perturbam-nos. Se nos olham, sentimos um vago remorso. Medo de virmos a ser um deles? Acredito que são uma das nossas fronteiras. Mas é melhor não pensar nisso.
Licínia Quitério
4 comentários:
Doe o teu poema como um remorso, sim! tens razão, são a nossa fronteira...
Són eles sabem para onde vão, quais as visões que os atormentam. E é tão ténue a linha que nos separa!
Beijinhos e obrigada pela visita
http://mulher50a60.weblog.com.pt
Não resisto a comentar através dum poema que postei no meu blog em Fev deste ano que me parece bastante afim com o que me fez sentir o que acabei de ler, e achei além da forma, o conteúdo tb magníficos:
CAMINHADA
Percorri muitos caminhos
em busca do horizonte.
Atravessei rios profundos,
longas planícies sem fim,
com o sol, a chuva, o frio
a darem cabo de mim
Desfalecida, cansada,
num torpor, quase desmaio
ensaiei a morte viva
desfiei o meu rosário
Depois de tanto pensar,
relembrar e padecer
uma vontade nasceu:
a de deixar de viver
sacudi-me, levantei-me
retomei a caminhada,
desbravei, recuperei,
a vontade de existir
Lá no fundo o horizonte
já me parecia mais perto
com o corpo em água feito,
com os olhos enevoados
pela poeira do chão,
alcancei o meu destino
e desfaleci de exaustão.
Teresa David/1995
Belo pçoema Licínia.
A questão da (a)normalidade e da autonomia e sentido que se dá à vida, ao nosso quotidiano, a determinação do que se busca.
Muito bem.
Bjs
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