Os braços tão pesados,
escorrendo corpo abaixo.
As mãos dentro das luvas,
não galantes
que para tal o tempo não chegou.
O corpo, assim franzino,
aos poucos devorado
pela doçura do mal.
Aos pés, o elmo
desmesurado, austero,
pronto para encobrir
os doirados cabelos
e depois deles a figura inteira.
Os ombros falsamente erguidos,
esperando que não venha
a luta por que esperam.
Olhos de loiça azul
abertos pelo espanto
de se verem ali no meio do dia
que só meio haverá.
No branco desamparo,
o podemos olhar,
o podemos chamar
de rei, de rei-menino,
Sebastião em pedra regressado
lá dos confins da História
para onde o expulsou
dos homens a cegueira.
Mandaram-no reinar e fez-se rei.
Mandaram-no matar e fez-se morte.
Mandaram-no voltar e fez-se mito.
Pelos tempos se tornou
remorso insuportável
e lhe chamaram névoa,
esperança, desejo, aparição
e tudo o mais que queremos
e (quem sabe?) tenhamos
aqui à beira mão.
Licínia Quitério, "Da Memória dos Sentidos"
Gosto de ir a Lagos e de me sentar à beira da estátua. Tenho tido longas conversas com este rei-menino. Ele fala-me de Alcácer-Quibir, onde ainda não foi. Da última vez que estive com ele, avisei-o de que anda por aí um Poeta chamado Joaquim Pessoa a dizer que "Em Alcácer eram verdes ...". Não me deixou continuar. Esboçou um sorriso matreiro e disse, pontapeando o elmo: "Os meus súbditos são tão ingénuos! Um dia até serão capazes de acreditar que me verão no meio do nevoeiro.". Sobressaltei-me. Terá ele tido alguma conversa com o Bandarra? Ou terei sido eu que desalinhei a História?
Deixei-o a brincar. Não consegui contar-lhe como acaba a aventura. Até porque, aqui que ninguém nos ouve, eu também não sei.
Licínia Quitério
7 comentários:
belíssimo este teu trabalho. Obrigada. bjs e :)
Olá Licínia! O teu sítio do Poema, é mesmo um Sítio de Poemas.
Belo Menina, muito belo este exemplo de amor ao desconhecido por amor a um rei-menino que sempre me apaixonou também.
Obrigada pela visita.
Regressarei! Prometo!
Um beijo
Maria Mamede
Uma verdadeira delícia...
Bjinhos
Porém, a verdade é que o nevoeiro se adensa!
Mas gostei muito do teu Rei-menino: sem o Bandarra por perto.
O João Cutileiro deixou muitos trabalhos em Lagos
Durante muitos anos esteve, frente à Estação de Correios, à esquerda deitado na relva, quando se caminha para a praça onde está esse D. Sebatião, um dorso de mulher, extraordinário.
Para surpresa minha, o ano passado já lá o não vi.
Pena. Muita pena!
Mais à frente, junto ao quartel há um tríptico delicioso.
Gostei tambem do teu texto, sobretudo pela agilidade da composição nos dois textos.
Essa ideia de fazer um (certo) contra-texto, à composição inicial é excelente...Bem, não será correcto «contra-texto, melhor seria adenda...Dir-me-ás o nome que achares melhor)
Bjs
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