24.10.06

DAS MEMÓRIAS


Vale a pena falar
das lágrimas em cacho
a engravidar os nossos rios.
Dos lugares perdidos
de manhã e nunca
nunca mais anoitecidos.
Do cheiro à terra fresca
dos campos que lavrámos.
Dos filhos embalados
nos braços persistentes
da memória.
Dos desamores maiores
com que os amores nos atam.
Dos rostos antes lisos
talhados pelos ventos
dos pontos cardeais.
Do claro-escuro
da sala onde vivemos
a única versão do filme paraíso.

Vale a pena falar
do que fomos e andámos
e sofremos.

Só devemos calar
o que sonhamos.

Sabes quem eu sou? Não te lembras de mim? Tirou os óculos. Com os dedos escondeu o bigode grisalho. Os olhos dela bailarinos a procurar algum sinal do passado. E ele de repente a rir, atirando a cabeça para trás, exageradamente. A medo: O D.! Claro, miúda. Demoraste. Há quantos anos? Não digas. Foi ontem. O abraço, ligeiro e depois apertado. Como me reconheceste? Estamos tão crescidos. Ele riu de novo. Pela voz, miúda. Quem tem uma voz como a tua? Ah, sim. Sentiu-se corar. Adolescente de novo. Hoje estou com pressa. Um seminário, estás a ver. Um dia destes almoçamos juntos, pode ser? Para lembrar tempos antigos. Ela disse: Talvez. Ele deu-lhe o número do telefone. Viu-o sair, virar-se para trás e acenar. Ficou especada. Deitou fora o papel com o número do contacto. A voz, só a voz não envelhecera. Ficou contente por saber onde se escondera a sua memória.

Licínia Quitério

19 comentários:

GTL disse...

Quisera eu trazer o passado roubado na algibeira
beijo carinhoso
MDB

M. disse...

Belíssimas, Licínia, as letrinhas pretas e as azuis!

JPD disse...

Muito bom.
Bjs

Titá disse...

Genial! Excelente!
É incrivel como tuas palavras entram em mim e circulam em meu sangue, emocionam meu peito.
Beijoca

Maria P. disse...

Lindo. E tantas recordações de papelinhos deitados fora...

beijinho, vizinha.


P.s. Ontem apanhei uma chuvada, eu e a passarada na Esplanada Real:)))

Anónimo disse...

Quantas memórias escondidas e quantos sonhos calados...
Sublime...

Um beijo

Era uma vez um Girassol disse...

Memórias...guardadas em baús...
Também tenho!
E a certeza de outros tempos sem retorno.
Beijinhos

aquilária disse...

(mais um) belo poema, licínia.
e tens razão, é o sonho que fala de nós, e não o contrário.

não resisti a reler o teu post anterior... :)

um abraço grande

Menina Marota disse...

As memórias... do fundo da nossa alma... elas estão lá...

Lindo! Adorei... até porque sou dada a soltar memórias... ajudam-me a Viver... as boas e as más...

Beijito ;)

batista filho disse...

é uma sensação gostosa se reconhecer no que o outro escreve.

deixo o meu abraço fraterno.

Manuel Veiga disse...

gostei muito do poema. e do texto. vibra de tão grande "acumulação" de sentimentos. mantém essa tua voz clara e lúcida, pois há quem diga que a voz é espelho da alma...

Teresa David disse...

Uma nostalgia poetica impossivel de nos deixar indiferentes. Muito bom!
Bjs
TD

Titá disse...

Lindo!!!
Vale sempre a pena...quando a alma não é pequena.

Beijo e bom fim de semana

Alberto Oliveira disse...

... esperou, esperou e tornou a esperar que ela lhe telefonasse. Impaciente, pôs-se em campo. Na lista telefónica da cidade o nome dela não constava; mas sabia lá ele se ela não teria mudado de ares e, quem sabe, estivesse apenas de passagem. Dos recônditos da memória retirou uma palavra que ela pronunciou no breve encontro: "sítio". "O Sítio... de qualquer coisa"; só lhe faltava o "qualquer coisa"...
Correu "séca & meca" e estava quase a desistir quando se lembrou do Google! E lá estava; era esse o nome! "O Sítio do Poema". As pistas não eram animadoras porque escassas; um céu azul com algumas nuvens e a copa de uma árvore. Mas persistente como sempre fôra, não desistiu e ao fim de alguns dias chegou. Batia tudo certo; o céu azul com algumas nuvens e a copa de uma árvore. E leu:

"Só devemos calar
o que sonhamos.
.

Percebeu que o poema não lhe era endereçado e regressou ao ponto de partida. Dias depois, no lugar onde a tinha encontrado e ao parar para acender um cigarro, os seus olhos casualmente, viram no chão um papel com o seu número de telefone.

MORAL da HISTÓRIA:
A memória não tem telefone fixo ou móvel; nem código postal. E os poemas sonham-se; depois é que se escrevem. Quando fechamos os olhos e adormecemos.


Resto de um óptimo dia de sol!

batista filho disse...

"das memórias" só poderia mesmo nos incendiar as nossas. em sendo assim:


se calo o que sonho
emudeço o que vivo

se vivo o que sonho
ouvirão o canto do meu silêncio

mas
se calo o que sonho
e falo só o que vivo
mato o silêncio de minh’alma
aí já nem sei se é vida o que vivo
... ou se o que reneguei
foi sonho ou delírio

***
Deixo outro abraço fraterno... e o meu mui obrigado pelo mote!

Maria P. disse...

Bom domingo vizinha.

Beijinhos:)

Velutha disse...

Passei para te deixar um beijinho e desejar um bom domingo.

Teresa David disse...

Como me é familiar essa sensação de reencontro de alguémana que não envelheceu na nossa memória e o constatar que na realidade o tempo provocou alguns estragos. E sempre penso: Também sentirão o mesmo em relação a mim?
Bjs
TD

Diafragma disse...

Giríssimo. E de facto, só a voz não envelhece.

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