Foi numa manhã de chuva miúda que punha a cidade cinzenta e chorosa, igual ao rio. Que idade tínhamos? Sei lá eu. Adultos de vidas feitas, imperfeitas. Crescêramos à sombra da inquietação de nunca chegarmos a ter o sol nas vidraças sem cortinas. Por vezes cruzávamo-nos em salas bafientas, em ruas escusas, onde as falas se faziam de repente claras como se a luz afirmada as invadisse. Tínhamos amigos com quem podíamos soltar pragas e discutir o futuro como se dele tivéssemos certezas. Íamos lendo e descobrindo outras letras, de contrabando e ousadia. Desafinados, cantávamos baixinho canções que só nós ouvíamos, feitas por outros que viviam no perto ou no longe, atravessando os túneis, saltando as devesas.
Na manhã de chuva miúda, descemos às ruas e corremos às praças e sempre nos encontrámos e nos abraçámos e chorámos e cantámos, com a voz alta que tínhamos guardada. Soltámos o amor e ele fez caminhos imprevistos, com cheiro a cravos e cafés de madrugar. Foi há tanto tempo. Tempo de vidas vividas e acabadas. Tempo de ter ficado mais um tempo para contar que era uma vez uma espingarda que floriu e uma mulher que gritou o seu nome: Liberdade.
Licínia Quitério
21 comentários:
Emocionaste-me, bolas...
E agora chovo e não vejo as teclas...
Um beijo para ti e um cravol de Abril!
UM ABRAÇO
de cravos poetas
numa madrugada imensa.
Um bom dia, com um cravo:)
Beijinho*
Abraço-te com a mesma emoção e força com que o fiz - a ti sem te conhecer, a tantos outros-há 36 anos!
Beijo de Abril, amiga:))
Como não sou propriamente poeta, guardei este seu poema - o 25 de abril foi de cravos. Infelizmente agira murcharam quase todos.- Onde o lugar para a esperança?
Bem sei que«esperança o teu nome é teimosia/de querer ouvir as pedras a cantar».-dizia o JGomes Ferreira...É preciso é estar atento até conseguirmos ouvir a voz das pedras...
Um cravo para si
Beijo de Abril, amiga, com um cravo de pétalas tão belas como as palavras do seu texto!
Viva a Liberdade! 25 de Abril, SEMPRE!
Talvez. Um muito forte talvez. Para isso existiu a manhã de chuva miudinha. Para isso existem textos como este, que recordam, celebram e comovem.
É um choro bom, Maria. De lavar cansaços.
Bettips, imensa a madrugada que ainda em mim não se fez noite. Nem em muitos de nós.
Maria P., com cravos no peito é como sempre nos temos encontrado.
Justine, ainda não esgotámos os abraços. Há sempre um amigo à nossa espera.
Amélia, obrigada por gostar do texto. É uma prova de que ainda espero que as pedras cantem.
Quicas, pelas palavras de Abril nos vamos encontrando.
Alien, Gostei de vê-lo por aqui neste dia de semear palavras e abraços.
Magníficas palavras sobre o 25 de Abril e da Liberdade.
Beijo amigo
Filó, obrigada. As palavras de Abril moram no meu peito. Depois, é só arrumá-las :)
Um dia
de novo
seremos crianças
em ABRIL
Mar Arável,
Crianças podemos ser todos os dias, brincando às escondidas com a esperança.
Um texto emocionante, Licínia. Para não esquecer que a Liberdade é o nosso bem maior.
"Íamos lendo e descobrindo outras letras, de contrabando e ousadia."
É o que continuamos a fazer.
Um grande beijo.
Muito obrigada, Graça, pela sua gentileza de sempre.
Um beijo.
Já venho um pouco atrasada em relação ao dia, mas penso que isso não tem grande importância porque o que dizes de maneira tão bela é sempre actual.
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