Não andava pela casa. Era a casa. As paredes abriam-se à sua
passagem. Faziam-se portas e janelas viradas para lugar nenhum, mas de que se podia dizer rua ou quintal. Escutava o soalho a falar palavras
antigas, sem sentido. Havia o tecto manchado de céu, de asas de borboleta. Não
havia móveis. Ela sabia que há muito tinham fugido para áfricas, brasis, onde
voltaram a ser árvores, antes do lenhador. Vozes na casa, nos corredores da
casa, nas salas vazias. Vozes doces, redondas, limpas de estridências e
soluços. Para lá das paredes abertas, os quintais em volta. Do húmus, a forte
germinação das sementes. Um canto de pássaros do sul a rasar as copas, a rasar
as estevas. Sem flor ainda, as estevas. Na mão, a lâmina de sol. Brandiu a
espada que da lâmina nasceu. Um grito de fera ferida irrompeu da terra,
atravessou as paredes abertas, cravou-se no azul do tecto. Fez-se noite. Ela
deambulava pela casa, sendo a casa, quando a noite acabou e os móveis
regressaram das florestas. O miar de um gato nas redondezas trouxe-lhe o
despertar. Fechou a janela do quarto. No tecto havia aquela mancha que lhe
lembrou um urro de animal. Não a apagaria.
Licínia Quitério
Licínia Quitério
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