24.6.08

CANTATA DO DESASSOMBRO




Vou por entre as sombras
com uma saia de luz
e um trevo ao peito

Não sei dos símbolos
na casca das bétulas
nem da fala dos bruxos
curvados sobre a noite
nem do hálito das gárgulas
corroendo as pedras

Mergulho na água
a escrita das minhas mãos
e inauguro um livro
com a medida exacta
de um corpo nos meus braços

Sei da vida o que a morte me ensinou
A minha saia é luz e nada temo


Licínia Quitério

19.6.08

REGRESSO


Pela janela da infância, o mundo entrava.
O mundo, quero dizer, o canto estridente do canário da vizinha Celeste, com ganchos de tartaruga no carrapito.
O bater sola, cadenciado, do Júlio sapateiro, de beata apagada ao canto da boca.
O chiar do rodado do carro de bois, pachorrentos como se usa dizer dos bois.
Os gritos, os gritos dos meninos da rua que brincavam e lutavam e se insultavam, a enganar a fome da côdea que tardava.
Os gritos, os gritos das mães, a filarem-lhes as orelhas.
O piar dos pardais, à boquinha da noite, em luta por um abrigo nos braços do velho plátano solitário.
Noite feita, os morcegos a rasarem a janela, com seu chiar de ratos.
As corujas das torres a mandarem calar o murmúrio dos ares: “Chiiu, chiiu, chiiu…”.
Os pirilampos, na magia dormente das noites de Verão. Pequeninas estrelas ao alcance das pequeninas mãos.

Quando a janela da infância se fechava, começava o sono. E nele entrava um novo mundo, encantado e bizarro.



Era então que o canário da vizinha Celeste, liberto da prisão, voava como um louco em redor da cabeça do Júlio sapateiro, a bater sola sem fazer ruído, empoleirado no carro de bois que, vendo bem, nem era um carro, mas uma gaiola a abarrotar de pardais.
E havia os gritos, os gritos das corujas das torres, procurando as orelhas dos meninos da rua.
Depois, num clarão, as corujas, transformadas em pirilampos, pousavam, brandamente, no carrapito da vizinha Celeste.

Também os mundos se cansam.Talvez por isso, chegava o tempo em que tudo parava. E aquele mundo subia, subia, subia, deixando cá em baixo, ao rés do sono, a quietude, a grande paz. Até que, despertado pelo sol madrugador, o canário da vizinha Celeste cantava de novo, em estridências de amarelo oiro, a pedir-me que abrisse, inda por mais um dia, a janela da infância por onde entrava o mundo.


Licínia Quitério

13.6.08

CANSADOS RIOS



Se me perguntas
de que águas
me alimento

digo-te do tempo
em que os rios

tranquilos rios
de penas brancas

amaciavam mágoas
nos ombros da verdura

nada mais te digo
que hoje todas as palavras
são águas de outros rios

cansados rios
de chumbo e desassossego


Licínia Quitério

8.6.08

UMA PORTA

Provavelmente foi o cansaço de certas vozes que me fez desviar para uma ruela batida pelo sol violento do meio do dia. Era a única porta da primeira casa ao alcance da minha mão esquerda. Já não bem uma porta, mas um objecto ali esquecido pelos muitos anos da gente que pela casa passou. Na porta, uma montra de vidro estilhaçado. Vendo melhor, um quadro, uma colagem de despojos de batalhas presas no ranger dos dentes. Decadências, pensei, enquanto guardava o quadro na galeria da minúscula máquina de apanhar memórias. Uma pontinha de remorso, como se tivesse tentado roubar a alma a alguém.


Licínia Quitério

1.6.08

UM CORAÇÃO

Vestes talhadas em

claros panos de aconchego.

Sombras de orientes

a adornar águas de agosto.

Doiradas cabeleiras

anunciadas na fala das estrelas.

O zumbido ondulante dos insectos.

O azul, o grande azul

sobre a memória da terra calcinada.

Indiferente ao estrépito dos mundos,

neste desvão das horas se reclina

absorto um coração.



Licínia Quitério

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