29.8.11

O BALANÇO, O BALOIÇO


O balanço, o baloiço,
para cá, para lá,
vai acima, vai abaixo,
corre corre, para para,
sobe agora, desce logo,
tem cautela, sem temor,
lá ao longe, aqui ao pé,
foge foge, fica fica,
não te largues, salta agora,
fecha os olhos, abre a boca,
porque gritas, porque cantas,
tantas vezes, quantas vezes,
olha o chão, olha as estrelas,
e o menino, qual menino,
já não é, já não se lembra,
foi pequeno, foi maior,
subiu subiu, desceu desceu,
e o balanço e o baloiço
vai acima, vem abaixo,
para a frente, para trás,
mais depressa, devagar,
e a menina, qual menina,
já não é, já lá não está,
foi acima, foi abaixo,
foi ao céu, caíu ao chão,
correu correu, chorou chorou,
e o baloiço e o balanço
já não sobe, já não desce,
e o menino não voltou
e a menina não voltou,
e o baloiço lá ficou.
Foi a sorte que mandou.

Licínia Quitério

23.8.11

TIVE ENCONTRO


Tive encontro com o vento. 
O olhar de lume dos cavalos alados.
Os chicotes na desfolha dos palmares. 
Os meus cabelos de medusa, não mulher,
não serpente, não sossego.
Posso contar da leveza, da premonição,
do rodopio, da tentação.
Oiço, claramente oiço, as novas
do deserto soletrando água
nos sons primordiais.  
Línguas sem vogais que só o vento guarda
e anuncia no vórtice terrível, devastador,
da sua escrita de areia e lava.
Maior o meu tremor que o meu temor.

Licínia Quitério

17.8.11

SE AGORA



Se agora aqui estivesses, neste tempo

de brumas pegajosas, com sinetas de

alarme no coração dos ossos, ficarias

suspenso no adejar das raparigas,

remoendo silêncios de velha porcelana.

Caminharias no limiar dos precipícios,

para trás e para diante, numa demora

insustentável, num ritmo sublinhado

pelo metrónomo dos dias, assim

traçando as linhas da argúcia, da lucidez,

da amargura que se lia no vago tremor

das mãos, no desejo imerso nas pupilas,

na tentação da fogueira, sim, da fogueira

a chamar-te no estertor dos rios.

Se aqui estivesses, nestes dias de breu,

dirias, com os braços a despertar nos meus:

Hoje há chuva de estrelas.

Só no escuro as veremos.



Licínia Quitério

12.8.11

OS PENSAMENTOS




Os pensamentos do homem
fazem germinar objectos.
Antes da cadeira existir
já o homem se sentava
e fabricava os pensamentos,
a desenhar letras de fumo
na imobilidade do tecto.
Os olhos entrançavam danças rápidas.
Depois paravam e dir-se-ia um vapor
de saudade o que escorria pelos braços
que um dia seriam da cadeira.
Ainda que um cachimbo se demore
na bainha dos lábios, o homem dirá,
pelo canto da boca, as dimensões ideais
do seu antigo, único projecto.
Por ele ali chegou, ao lugar onde é possível
afirmar: loucura é nome de pássaro
na seara da noite.
Disse
e o carrossel de estrelas acendeu-se.


Licínia Quitério

6.8.11

OS HOMENS PLANTARAM



Os homens plantaram os cedros e disseram: Nós saberemos o vosso  tempo de crescer. Sereis os guardiões do vento e dos olhares indesejados. Não ficareis doentes nem morrereis sem nossa ordem. Ser verdes e fortes é o vosso labor e o cumprireis. Aceitareis os nossos excessos e não direis da vossa estranheza. Não dareis asilo a aves palradoras. Jamais quebrareis a mudez e o alheamento. Para nosso deleite, tereis frutos pequenos e olorosos. Não penseis em deitá-los à terra, pois os arrancaremos. Obedecer é o vosso destino, o vosso inestimável conforto. Imperturbáveis, os cedros. Dir-se-iam felizes os súbditos verdes dos homens cinzentos. Não se entende porque apareceu uma rede entre os cedros e os homens. Há quem diga que os protege da mudez absoluta dos cedros.

Licínia Quitério

1.8.11

QUE SABES TU



Que sabes tu da casa?
Abriga-te, veste-te a dor e a alegria,
dá-te olhos para saberes os mundos.
É enorme e vazia no verão de cada inverno.
Cheirosa a sândalo, pequena, 
na festa imaginada do amigo ausente.
Pouco mais sabes.
Nunca saberás quantos pombos a olharam
nem o dia em que o vento lhe roubará
a transparência das vidraças.

É a tua casa, ou és tu a casa. Tanto faz.

Licínia Quitério

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