29.4.06

CECÍLIA

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
Sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

CECÍLIA MEIRELES

Bonito poema. Bonito este rosto de Mulher. Bonita a mão que o desenhou. Tanta gente bonita no nosso mundo. Tanta coisa bonita a enfeitá-lo. E nós que teimamos em perder-nos nos meandros da fealdade.Também pela beleza nos havemos de salvar. Uma bela palavra, um belo sorriso, uma bela amizade. Basta acordar um dia com os olhos lavados pelo luar e enfrentar o sol sem nos queimar. Pois, difícil de conseguir. Mas é urgente tentar. Acho eu.

Licínia Quitério


Desenho de Almada Negreiros

28.4.06

MENINA

Aquela menina
tem olhos de mar
cabelos de sol
nas mãos um novelo
de linha de sonhos
a desembrulhar
palavras em fonte sem nunca secar
pulando correndo
os braços traçando
figuras no ar
que nem ela sabe onde vão parar

Menina cresceu
seus olhos de mar
avistaram barcos
de longe a chegar
cabelos de sol
se fizeram asas
ao vento espalhando
um novo cantar
palavras palavras
sempre desfiando
com elas crescendo
novelo a tomar
a forma escondida
do seu coração
incerta batida
uma certa aflição

Menina-mulher
seus braços em berço
já sabem traçar
as formas do amor
que a vai ensinar
a louvar a vida
que lhe trouxe os barcos
para navegar

Licínia Quitério


Quem não conhece Meninas como esta? Barulhentas, saltitantes, em risadas estridentes, em choros fortes mas breves, sempre prontas a desarrumar os lugares pretensamente seguros dos adultos. Encantam-nos, provocam-nos, causam-nos inveja. Fazem-nos olhar para a carruagem detrás do nosso comboio, mas aí só encontramos vagas sombras de outras Meninas de outras viagens. Estas já lá vão muito à frente, num outro comboio, bem mais rápido. Têm pressa de chegar a uma estação que lhes disseram chamar-se Futuro. Que cheguem bem. Nós faremos tudo para tão cedo não as perdermos de vista.

Licínia Quitério

P.S. Com estas Meninas, pretendo fazer passar um cheirinho de alegria e compensar-vos do "peso" do post anterior. Obrigada por me lerem.

26.4.06

DO HORROR


Se um dia acontecer que dês por ti
rodeado de escombros de um inferno
que homens e afectos calcinou
e um silêncio de cinzas te comprimir o peito
e os passos se tornarem de súbito pesados,
ao caminhar nos trilhos dos comboios passados,
e os olhos se mancharem de vapor de lágrimas
quando vires os despojos bafientos - a pele, o pelo, o dente,
o urso de peluche, a maleta, a muleta…
e as unhas se fincarem necessariamente
no reverso das mãos molhadas de suor,
perante o horror escorrente das paredes hirtas,
e os lábios se cerrarem até à flor da dor
ao enfrentares os fornos, os wagons, as latas do veneno,
e voltares desse campo, feito para não voltar,
com as pernas a tremer, a arredar o pranto,
e te sentares à mesa e não puderes comer
enquanto não largar da goela o garrote,
não perguntes mais nada, aquieta-te, descansa,
compreende que tudo aconteceu
porque entre os homens não houve vizinhança.


Licínia Quitério, "Da Memória Dos Sentidos"


AUSCHWITZ poderia ter sido apenas um lugar como tantos outros, algures no interior da Polónia. Sem história e com o seu nome polaco original, em vez da tosca adaptação para o alemão, por semelhança fonética. Poderia, se a Besta não o tivesse elegido para altar de sacrifício de milhões de homens que ali foram reduzidos a nada. AUSCHWITZ é um dos expoentes de vergonha da Humanidade. A frase que encima o portão do campo de extermínio e que, em português, quer dizer "O Trabalho Liberta", é, por si só, um crime maior para o qual não encontro perdão.
Já fui visitar este campo. Senti-me mal. Com o mundo, comigo. Foi há muito tempo. Não gosto de falar disto. Mas, comprenderão, tenho de o fazer, de vez em quando. Hoje, foi convosco.

Licínia Quitério

24.4.06

25 DE ABRIL

É sempre tempo de falar de um Abril que aconteceu, de remoer um Abril que se não deu.
Em Abril renascemos. Respirámos tão fundo que à nossa volta estremeceu o mundo.
Assim fizemos nós, os já cansados, os sofridos, os ansiosos pela luz tardia no brilhar.
Assim falo eu dos que Abril aguardaram em silêncios redondos de medo e solidão. Dos que mais longe foram e rasgaram o escuro e por isso pagaram com o corpo e o coração.


Depois de Abril nasceram. Não trouxeram consigo a memória das sombras. Não precisaram de aprender da Liberdade o nome, porque ela os inundou como se seiva fora, primordial e imensa.
Assim falo eu dos que souberam pelos pais e os pais dos pais que um outro mundo houvera em que o Adamastor impedira a dobragem do Cabo das Tormentas que em Esperança se tornou para lá dos temporais.


Outros irão nascer, netos dos netos a haver. A pouco e pouco Abril se irá esbatendo, a lembrança dos homens esmorecendo. Mas Abril ainda aqui está e aos fantasmas do ontem que por aí assomam, de sorriso rasgado, mas com o olhar gelado, aos novos comedores do sangue da manada, aos velhos fazedores do mito e da traição, hoje diremos, com o queixo levantado, do nosso amigo segurando a mão, a palpitar, festivo, o coração:

ABRIL NOS DEU A HORA E NADA FOI EM VÃO!

ABRIL NOS DEU A HORA E NADA FOI EM VÃO!

Licínia Quitério

23.4.06

DO SONHO


Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,

pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.

Chegamos? Não chegamos?

Partimos. Vamos. Somos.

SEBASTIÃO DA GAMA

O Sonho pintado por René Magritte. O Sonho escrito por Sebastião da Gama. Os meus Sonhos. Os vossos Sonhos. Os Sonhos que nos povoam as noites e os que comandam os nossos dias. Com eles voamos, ainda que nos cortem as asas. Agora vou dormir um pouco. E sonhar...

Licínia Quitério

22.4.06

DOS MENINOS


Um Senhor POETA que anda por aqui disse num dos seus belíssimos poemas: " Há mundos insondáveis no riso que me lança e que acende no meu peito uma criança...". É de facto algo que sentimos, mas que raramente afirmamos, talvez por pudor, talvez por medo que a criança se assuste e se apague. Foi para esses meninos escondidos em nós que soltei este brinquedo.

AVIÃOZINHO

Voa voa aviãozinho de papel
O menino a dobrar e a redobrar
seu olhinho dizendo abracadabra

Resultou
A folha de papel acreditou
que era avião
voou subiu e o menino viu
a espuma branca e doce
onde dormitam anjos

O menino eras tu
que ainda dobra e redobra
folhas de papel
sempre que a brisa sopra
na esperança de rever
o anjo enroscadinho
uma asita pendente
a acenar a afirmar

Todo este céu é teu
Basta acertar no preceito da dobra
no momento da brisa
e cavalgar a folha de papel
a cabeleira solta
o peito descoberto
e respirar bem fundo
o cheiro ao novo mundo
em que o amor é lei
e o pensamento a estrada

Não pares de dobrar de redobrar
mas pelo sim pelo não
põe de lado a razão
e diz abracadabra

Licínia Quitério

20.4.06

DO AMOR


QUEM ERAS?

Estiveste sempre lá, no outro lado,
no avesso do leito,
embora ali.
Mais doce que o segredo
era o teu corpo a espraiar-se no meu,
a soçobrar.
Eras um sobressalto,
por detrás da rocha do teu dorso,
em arco tenso a despedir a flecha.
Quem eras, para além
da doçura do olhar,
da fervura do beijo?
O desejo de alguém que
ouvi chorar
baixinho, noite fora.
Ou talvez fosse o vento
a sussurrar teu nome verdadeiro.
Eras o belo passageiro
clandestino, à procura de abrigo
na pele do meu lençol.
Eras (quem sabe?) o tormento do mar
a querer prender a onda
e guardá-la na areia,
para a poder visitar
e amar na lua-cheia.

Não sei quem eras.
E depois?
Sei bem que foste, Amor,
igual a nós os dois.


Licínia Quitério, "Da Memória dos Sentidos"

A partir de hoje, serei um nome e um apelido e não apenas duas letras e dois pontos. Sentir-me-ei mais confortável, assim por extenso, nesta casa que vou construindo com as palavras que os dias me derem e que partilharei convosco.

Licínia Quitério

19.4.06

MIGUEL TORGA


O nome que constava dos documentos era Adolfo Correia da Rocha. O seu rosto tinha ângulos de rocha granítica, arrancada às serranias que o viram nascer, mais propriamente em São Martinho da Anta, onde, como o nome sugere, homens ergueram, com rochas, uma anta. Contra a ditadura, a sua atitude foi firme como se diz de uma rocha. Presentemente, podemos ver-lhe o vulto esculpido em rocha.
Este Homem, que parecia transportar um destino de durezas e asperezas, foi capaz de escrever poemas de uma brandura, de uma suavidade, capazes de fazer estremecer o coração mais empedernido.
Quem alguma vez poderá dizer qual é a substância dos poetas?
Talvez, sabe-se lá, eles sejam rochas feitas do pó das estrelas.


Não tenhas medo, ouve:
É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso, ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar,
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz.


MIGUEL TORGA

18.4.06

A TREPADEIRA

Serei o alpendre da casa antiga
a que se agarra a trepadeira
com verdes mãos em prece,
prometendo o negócio das flores
na estação própria.
Serei até a casa inteira
a acolher o perfume das flores.

Só preciso saber da trepadeira
o nome inscrito há muito na raiz.




Não acham que a palavra Alpendre podia também chamar-se Amigo ou Mãe? Há palavras tão amáveis! Só de as tocarmos por dentro da voz nos sentimos seguros e tranquilos. Isto digo eu, mas é uma opinião suspeita porque pelas palavras me apaixonei há muito. E os apaixonados, como todos sabemos, são dados a desvarios, a exaltações. Por vezes, não têm cura, nem a querem. Assim sou eu.


L.Q.

16.4.06

GUERNICA



E a flor? Só quatro pétalas. Ou três?
Ainda viva.
E a luz do candeeiro? Extensão do músculo do braço. Só braço.
Acesa.
E o filho? Já não. Só o grito na boca retorcida da mulher.
E a besta? Narinas fumegantes e patas muitas a esmagar a eito.
Tão funda a dor. Tão sem remédio o espanto.
Aconteceu?

Só muito recentemente tive o privilégio de admirar este quadro, em Madrid, no Museu Rainha Sofia. Experimentei talvez a mais funda emoção da minha vida ao contemplar uma obra de arte. Julgava que a sabia de cor. Não. Não há reprodução possível para imagens desta intensidade. Vi gente em lágrimas perante a enorme tela. Eu não estava só.
Que viva Pablo Picasso!

L.Q.

EUGÉNIO DE ANDRADE


OS AMANTES SEM DINHEIRO




Tinham o rosto aberto a quem passava
Tinham lendas e mitos
e frio no coração
Tinham jardins por onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados

Tinham fome e tinham sede como os bichos
e silêncio
à roda dos seus passos
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços

EUGÉNIO DE ANDRADE


O Poeta brasileiro Manoel de Barros afirmou: "Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos". A propósito deste poema à sublimidade do Amor, quero que o pássaro diga o que eu não sei dizer.


L.Q.

15.4.06

ÁRVORES

São nossas companheiras de viagem. Acho que sempre tive árvores amigas a quem tratei por tu. Quando eu era pequena, em frente à minha casa havia uma Figueira e uma Nogueira. Os meninos pobres aguardavam avidamente que frutificassem. No jardim público, um Dragoeiro exibia o tronco em que os apaixonados adolescentes esculpiam corações trespassados de setas. As Amoreiras ofereciam as folhas para alimentarem os bichos-da-seda, criados em caixas de sapatos com furinhos. As Tílias aromatizavam as noites de Verão.
Agora que já sou mais crescida, namoro com um Plátano solitário que é meu vizinho e que, por vezes, se atreve a festejar-me os cabelos, com a desculpa de um pequeno e inesperado vento. Faço de conta que acredito e retribuo a festa numa daquelas verdes folhas-mãos que no Outono serão douradas e correrão rua abaixo e me baterão à porta. Escolhi bem. É bonito, agarra-se com firmeza às profundezas da Terra, protege-me dos ardores desmesurados do Sol, mas deixa-me sempre ver o Céu por entre as malhas da rede dos seus braços oscilantes. Espero que nunca ousem derrubá-lo. Sentiria muito a sua falta.
Hoje, vou falar de uma outra árvore com quem travei conhecimento no último Verão. É fêmea, é esbelta e tem um nome difícil de pronunciar. Contei ao meu Plátano como ela é. Pareceu-me demasiado interessado. Confesso que cheguei a sentir ciúmes deste namorado vegetal. Mas não lhe dei a entender, como convém.

Ouve o que escrevi sobre ti, amiga Araucária.

A araucária não é só um nome
retorcido, esquisito.
Tem lá dentro uma árvore
erecta, sem hesitações.
Todos os anos lhe rebentam braços,
no patamar de cima, a abrir em leque.
Os braços têm mãos, de dedos escamudos.
Numa escalada calma,
o esdrúxulo nome vai-se construindo,
as mãos proliferando.
Os braços mais extensos
viram-se para o alto, a vigiar os novos.

A araucária não é só um nome.
Se tem dentro uma árvore, tem flores.
Se tem flores, frutos aí virão.
Discretamente, nos seus braços recentes
aninhará os filhos que ninguém colherá.
Tão alto os vai esconder que só os vê
quem um dia à sua sombra se deitar,
olhando o céu desenhado pelos dedos
da esdrúxula palavra (ou grave, tanto faz).
E quem os vir não calará seu espanto
quando, no chão colado, a desistir,
um fruto ou um astro verde descobrir,
a irmãos arrimado.
Um aconchego, uma frescura,
uma promessa de ternura.

A araucária, com seu acento agudo,
não é um nome. É um mundo inteiro.
Por isso os filhos-frutos só se mostram
a quem sentir o chão ou então voar,
mas sem perder de vista
os braços que mais logo nascerão.

L.Q.

13.4.06

FRIO

Como são frias as tardes
por trás dos vidros frios das janelas.
São tardes longas que nem a noite esperam.
São apenas tardes frias e longas
sem lagartixas nos muros
pretensamente austeros de pedra solta.
Tardes hirtas e esquálidas
como os santos de El Greco
porém a preto e branco
que sépia é ousadia.
Como são velhas estas tardes.
Atravessaram o cristal da estepe
desgrenhadas pelo vento
amarrotadas pelo rolar do tempo.
Chegaram e marcaram lugar
do lado de lá do vidro frio das janelas.
Pobre de quem contempla
o banco frio onde se alonga a tarde.


Quando a tristeza acontece, sabe bem porquê. Podemos ouvi-la a pedir que a acarinhem. Em versos, em prosas, em músicas, em danças.
Se a ignoram, transforma-se em raiva. Se a mascaram, pode chamar-se horror. Um dia, irá embora.
Nunca de vez. Como nós, que sempre partimos e voltamos. Ou desejamos que assim seja...

L.Q.

12.4.06

A SOFIA


Isto de falar de gente ilustre tem que se lhe diga. Ou, melhor, eu é que não sei como dizer. Mas apetece-me. E se me apetece escrever pensando em Sofia, escrevo. Pobre de quem me ler!
Conheço poucas palavras em grego, mas sei como se diz Sabedoria. A beleza de Sofia começa, assim, quando a nomeamos. E a cor dos olhos, e a leveza do vulto. Posso vê-la descalça nas orlas das praias, em trilhos de deusa que não ignora os homens. Pelos seus poemas passam cidades, ilhas, espuma de mar. Mas também nomes de gente que amou, que defendeu, que exaltou. Não esqueceu Catarina, a de Baleizão. Sofia foi a Grécia, foi Portugal, foi o Tempo. Foi a Palavra, a Harmonia. Nos seus versos, que me comprazem, se encontra a força necessária da MULHER.
Pronto, tinha de dizer. Disse. Agora escutemos Sofia, mais uma vez e sempre.


DERIVA

Vi as águas os cabos vi as ilhas
E o longo baloiçar dos coqueirais
Vi lagunas azuis como safiras
Rápidas aves furtivos animais
Vi prodígios espantos maravilhas
Vi homens nus bailando nos areais
E ouvi o fundo som das suas falas
que já nenhum de nós entendeu mais
Vi ferros e vi setas e vi lanças
Oiro também à flor das ondas finas
E o diverso fulgor de outros metais
Vi pérolas e conchas e corais
Desertos fontes trémulas campinas
Vi o rosto de Eurydice das neblinas
Vi o frescor das coisas naturais
Só do Preste João não vi sinais

As ordens que levava não cumpri
E assim contando tudo quanto vi
Não sei se tudo errei ou descobri



SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

CAVALOS

O cavalinho de pau da minha infância fazia lembrar um centauro travestido. (Naquela idade não tínhamos ainda ouvido de falar de centauros.)
Muitos mais cavalos vão povoando o nosso conhecimento e a nossa imaginação:
O cavalo de Tróia de que falava o compêndio de História Universal. Hoje já ninguém diz "compêndio". Como as palavras envelhecem connosco!
Pégaso, aquele cavalo alado que poderia levar-nos às nuvens.
As corridas de cavalos de Dégas. Tão vivos, tão galantes, esses bichos.
Os cavalos do Partenon que afinal vivem aprisionados em Museus. As cabeças, mesmo depois de arrancadas dos corpos, dizem-nos tudo sobre o cavalo inteiro.
"Os cavalos também se abatem" - o filme que nos pôs a pensar sobre quem abate e quem se deixa abater.
"O cavalo à solta" - a canção que empolgou quem se sentia num País à rédea.
Fica por aqui esta cavalgada da memória...


Um dia virá
em que os cavalos selvagens
abrandarão os galopes nervosos
em procuras sem rumo
e os prados verdes sinceramente verdes
refrescarão dos seus cascos a febre

O vento brando fará carícias de meninos
nas crinas ásperas ansiosas

As montanhas rugosas escalvadas
convidarão amáveis os cavalos
que as subirão sem esforço com doçura

Os cumes alcançados
firmes nas patas colunas de elegância
esticarão os pescoços rolarão os olhos
e sentirão o cheiro
o cheiro do universo

Esse dia virá em que os cavalos
não mais serão chamados de selvagens
que a imensa mansidão do universo achado
o não consentirá

L.Q.

11.4.06

DA ÁGUA



No dizer dos cientistas, água é H2O. Tudo tão simples: dois átomos de hidrogénio e um de oxigénio. Bem juntinhos, nas condições ideais de pressão e temperatura. E tal, e tal e pronto. Sem mistérios.
E para os poetas, esses seres que se dedicam a complicar tudo o que é simples, o que é a água?
Sabem lá eles... Nem lhes interessa. Olham-na, escutam-na, molham nela as palavras para que escorram pelos poemas. Mergulham até ao fundo dos lagos sem precisarem de deixar as margens, bebem a chuva sem mexer os lábios, cumprimentam as estrelas espelhadas nos charcos. Muitas vezes, ficam com os olhos rasos de água. É sinal de que lavaram a alma. Com água.


A chuva cai no lago.
Que dirá a água sobre a água?
Cada pingo grava
o centro de muitos círculos
e palavras secretas circulam,
cortam-se, afastam-se,
sobrepõem-se.
Todo o lago é um prado de murmúrios.
Gostas de mim?
Gooosto. Não gosto. Assim assim.
A água contra a água -
a que está e a que chega.
Donde vens?
Do alto, onde fui algodão.
E tu o que tens feito?
Remoinhos, acalmias.
Lutam.
Não me faças transbordar.
Não tenhas medo. Sei da tua medida.
Depois confundem-se, possuem-se.
Lago ou leito?
Água dentro de água.

L.Q.

10.4.06

OBRIGADO, ARY!


Pelo nome de JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS correm gritos pela Liberdade, canções de revolta e de triunfo, imprecações, inconformismos, subversões, fortes respirações de um Homem cuja voz abrasou e abanou a Cidade, o País.
E por dentro do seu vulto de gigante, também (e com que beleza!) o lirismo do Poeta, feito de palavras tão fortes e simultaneamente tão doces. Aqui recordo convosco um poema seu, onde afloram sons de ternura e de abandono.

Obrigado, ARY, por seres ainda e sempre um cheirinho do nosso ABRIL!


A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.
A cidade é um saco um pulmão que respira
pela palavra água pela palavra brisa.
A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.
A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.
A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.
L.Q.

9.4.06

DO FOGO


Prometeu quis roubar o fogo e os deuses não deixaram, mas os Homens o fabricaram.
Nada ficou como dantes. Com ele aqueceram o corpo e incendiaram o coração.
Se olharmos fixamente as chamas das fogueiras, poderemos ver Prometeu dançando,
liberto das correntes e das aves de rapina. Experimentem! Também de mitos vivemos!...


A LAREIRA

Ateavas o fogo da lareira
com minúcias de escriba acocorado.
Arrumavas a lenha
em solidez geométrica.
Conhecias o momento exacto
do explodir da pinha.
Acalmavas a chama
com o olhar.
Recolhias a cinza
como quem afasta a sombra.
Eras Senhor do fogo
e com ele aquecias
as mãos enregeladas
pela nortada.

O fogo dominado,
os dedos confortados,
escrevias então por todo o lar
a presença, o carinho, o abraço.

E em mim nascia o sobressalto
de o lume se apagar.


L.Q.

FRIDA Ferida


Trata-se de Frida Kahlo. A obra dela está aí para a podermos saborear. Para nos comover, para nos arrepiar. A artista e o seu calvário. Um monumento à dor. Está na moda, diz-se. Ainda bem, direi. Tem a ver com ela (também) o que escrevo a seguir.


FERIDA

Falava com a raiva
enrolada ao pescoço
e as vogais eram surdas
quando dizia os nomes
os lugares as datas

as mãos em punho
que punhais não lhe deram

as faces polvilhadas
pelo sal do choro que secara

agitava o corpo
e as pregas da saia
ondeavam em fúria

cavalos-marinhos
prendiam-lhe os cabelos
e dálias de fogo
brotavam-lhe dos seios

os pés esmagavam cactos
e sangue e seiva
se entendiam

era uma dor soberba
a da mulher dos sonhos
violados

às vezes ria
L.Q.

8.4.06

O PRIMEIRO DIA DA VIDA DE UM BLOG

Uma aventura por caminhos virtuais. A sedução dos novos tempos a que não quero resistir. Para além desta janela, há gente feita de nervos e de sonhos. Como eu.
Porque não tentar a a ponte? É hoje o dia do arranque. Resultados? Logo se vê.
Apresentações? Não valerá a pena, por agora. Que os posts o façam, se
tiverem essa virtude. Gosto de escrever, claro. Gosto que me leiam, claro. A isso aqui venho. Gosto de Poesia. Muito. Procuro-a com avidez. Nos outros e em mim.
Neste cantinho, espero ir dando testemunho de "coisas" que escrevo e de poemas que me tocam. Para já, e porque ainda não estudei o manual, de forma a poder vestir estas páginas com roupagens atraentes, peço desculpa pelo cinzentismo gráfico.
A seguir, com todo o descaramento e narcisismo, apresento uma das muitas "coisas" que escrevo.


CONVERSÁVAMOS

Conversávamos ao crepúsculo.
Soltávamos palavras e podíamos escutar-lhes o eco.
Algumas eram palavras de mulheres
que às vezes também cabem aos homens.
Outras batiam no tampo da mesa do café
e recusavam-se a continuar
porque incompletas.
Procurávamos o silêncio por dentro das palavras
e ele aflorava o nosso medo de o conhecermos.
Falávamos de quê? Do que não sabemos e nos dói
porque saber é a nossa meta.
Louvávamos os humanos naturalmente imperfeitos
que lançam pistas para a perfeição.
Despedimo-nos já a noite chegara.
Isto foi ontem.
Hoje transportamos dúvidas maiores porque delas falámos
mas estamos mais perto do dia em que saberemos do silêncio
.
L.Q.

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